Textos da quarentena 7

Os Modismos Linguísticos

  Não é à toa que se diz que uma língua é viva ou que uma língua é morta. Uma língua viva, por definição, é falada por vários indivíduos - uma parte deles nativos, mas não só - e vive efetivamente. Vive, na medida em que precisa de se adaptar aos tempos, às necessidades e às ideias das diferentes épocas para ser um verdadeiro instrumento de comunicação. Uma língua viva é, portanto, uma língua que está em contacto com outras e é ainda uma língua que tem os seus gostos, as suas manias e as suas particularidades, um bocadinho como cada um de nós. 
  Como afirmei anteriormente, uma língua viva está em contacto com as outras. Vamos, então, passar à língua que quero pôr aqui em destaque hoje: o Português. O Português está em contacto com outras línguas há muito tempo. Temos fronteiras com Espanha, portanto, convivemos com os dialetos do outro lado da península desde há muito tempo, mas a nossa língua também esteve em contacto com outras um pouco mais distantes. É o caso do Francês e do Inglês, só para dar um exemplo. É importante recordar também que o nosso idioma também coabitou com o Árabe durante algum tempo e que também ele deixou as suas marcas na língua de Camões. É inevitável que as línguas recebam influências estrangeiras, quer queiram quer não queiram. 
  Pensemos, então, um pouco na história dos contactos linguísticos que o Português entreteceu. No Renascimento - e creio até que ainda antes -, a língua castelhana era considerada mais bela e mais elegante do que a portuguesa. Por essa razão, inúmeros escritores - como Gil Vicente ou até Camões - chegaram a escrever em castelhano e foram colhendo palavras deste idioma, que depois se aportuguesaram. Mais tarde, a partir do século XVIII, virámo-nos para o Francês, que nos influenciou durante bastante tempo também. Basta ler Eça de Queirós para ver a quantidade de galicismos utilizados; alguns deles até já fazem parte do nosso sistema linguístico. É só pensar nos croissants, na maionese, no menu ou na cor "bordeaux". A moda do Francês terminou e, claro, uma nova moda surgiu: a do Inglês. Após a II Guerra Mundial, o Francês entrou em declínio e o Inglês, associado aos riquíssimos Estados Unidos da América, passou a ser ainda mais bem visto - sim, porque já o era. Eça de Queirós também usa anglicismos e a língua inglesa gozava de uma boa saúde ainda na altura em que a língua de Molière vivia o seu apogeu.

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  Essa nova moda, que ainda hoje perdura, é a moda do Inglês americano. Não tenhamos ilusões. Ainda que muitos gostem do sotaque britânico, a variante americana desta língua é aquela que detém mais poder no mercado linguístico. Basta pensarmos na quantidade de séries americanas que nos chegam diariamente a casa para nos apercebermos de que é impossível não sermos influenciados pelo modo de vida norte-americano. Obviamente, isto significa que passamos a ver o Inglês como um idioma nobre, digno de consideração, razão pela qual muitos jovens se exprimem nas redes sociais em inglês e ouvem música maioritariamente em inglês. É também por esse motivo que estudamos, anos e anos a fio, a língua em que escreveu Orwell. 
  Se esta língua é tão importante no contexto mundial - e até no nosso pequeno mundo -, isso também significa que ela já nos deu palavras e expressões. É interessante ver que os advérbios "basicamente" e "praticamente" - e faço aqui uso do que aprendi nas minhas aulas de Linguística Francesa (parece irónico, mas não é, porque falámos sobre contactos linguísticos) -, com o sentido que hoje têm, vêm diretamente do Inglês. "Praticamente" significa hoje "quase", quando, se pensarmos logicamente, "praticamente" deveria significar "de modo prático"/"de forma prática". Evidentemente, os falantes nem sempre fazem escolhas lógicas, antes pelo contrário. Muitos outros vocábulos ingleses já foram adaptados e incorporados na nossa língua, tanto assim é que não os sentimos como estranhos ao nosso idioma. Ainda assim, o uso crescente do Inglês, e os calques que dele se fazem, têm muito que se lhe diga. Vou dar dois exemplos:
  Comecemos pela expressão "it's supposed to". Por exemplo, a frase"It's supposed to be funny" seria traduzida hoje como "É suposto ser engraçado" - e esta tradução que faço já é mais inglesada do que propriamente portuguesa (veja-se: https://ensina.rtp.pt/artigo/e-suposto-nao-falar-assim/). Aliás, seria mais adequado dizer "Supõe-se que isto é engraçado"/"Espera-se que isto seja engraçado"/..., isto numa lógica de adaptar a frase inglesa à estrutura e ao espírito da língua portuguesa. Penso, no entanto, que o "é suposto" é uma batalha perdida. Não me soa mal, o que significa que eu, como tantos outros, já interiorizámos esta expressão. O que já acho inaceitável é dizer-se "Eu era suposto estar em casa" (!!!!!!!!!!!!!!). PAROU. Vamos acabar com este calque do inglês que fica horrível em português! Diga-se antes "Contava estar em casa"/"Supunha que estaria em casa"/(...).
  O segundo exemplo tem a ver com o verbo inglês "to realise/to realize" (=aperceber-se). "I realised I was late" traduz-se por "Apercebi-me de que estava atrasado"/"Dei-me conta de que estava atrasado". Realizar, em português, significa fazer, executar, concretizar algo. Ex: Eu realizei este trabalho sozinho. Não é um verbo de conhecimento. Assim, dizer "isto foi a realização de que vivemos numa sociedade complicada" deve ser evitado! Prefira-se "Isto foi a tomada de consciência de que vivemos numa sociedade complicada" ou outra expressão equivalente. 
  Não escrevo este texto para criticar os falantes e, na verdade, gosto da língua inglesa! Só acho que temos de prezar a nossa. Creio que a batalha está, no entanto, perdida, uma vez que o povo português tem este gosto pelas modas. Além disso, há algo que devo dizer: é impossível interagirmos com um outro idioma e não deixarmos que ele modifique, por pouco que seja, o nosso. Se, já a nível pessoal, alguém que passe demasiado tempo a ler em inglês, espanhol ou francês acaba por resvalar um pouco para o outro idioma, mesmo que não o queira, é impossível impedir certas modas linguísticas. Já me aconteceu escolher certas expressões em português porque se aparentavam mais com uma expressão francesa com que me havia cruzado e, muitas vezes, fi-lo sem querer. Acho apenas que podemos medir o que fazemos da nossa língua da seguinte forma: no caso das línguas latinas, há imensas expressões idênticas, logo, fazer calques de outra língua latina não costuma ser problemático, mas há exceções. Porém, no caso do Inglês, que não é uma língua irmã da nossa, as dificuldades são outras. O melhor remédio é o nosso juízo gramatical enquanto falantes nativos. Devemos ir por aquilo que nos soa melhor, mais natural e ter cuidado com os calques que fazemos. Quando os fazemos, podemos sempre perguntar a nós próprios: este calque ajusta-se aos contornos da minha língua? Ou nem por isso? Choca com a estrutura dela ou não? Na dúvida, utilizamos sinónimos ou reelaboramos a frase ou a expressão. 
  A nossa língua vai sair mais rica do contacto com a língua inglesa, mas não devemos deixá-la ao "desbarato". Não devemos desvalorizar a nossa língua, sob pena de lhe deixarmos algumas marcas menos boas. Deixo, a propósito deste tema da desvalorização do que é nacional, uma belíssima passagem do romance Uma Família Inglesa de Júlio Dinis: 

"A causa disto é o sermos nós uma nação pequena e pouco à moda, acanhada e bisonha nesta grande e luzidia sociedade europeia, onde por obséquios somos admitidos, dando-nos já por muito lisonjeados, quando os estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós."


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