Textos da quarentena 4


Vivemos por contrastes

  Talvez todos os computadores e relógios desta casa marquem a mesma hora. São 23:18 de uma noite de março, mais uma que se perderá nos anais do tempo. Mais uma noite em que os corpos cansados suspiram pelo abraço dos lençóis e pelo doce embalo do sono. Suspiraria eu também se soubesse que poderia dormir descansado e acordar fresco na manhã seguinte, prestes a colher a beleza do dia. Como tenho receio de que a noite não me embale inteiramente nos seus braços, dedico-me à escrita, pois sei que saberei apreciar o fruto de amanhã, venha ele revestido de inúmeras horas de sono ou não.
  Escrever é um bálsamo que funciona como um vidro. É usando palavras, procurando sentidos e arrancando verdades do coração que o nosso edifício interior faz uma ponte com o desconcertante mundo exterior. Vejo a rua por dentro e por fora em simultâneo. As sombras do interior não se projetam apenas em mim: elas saem do que eu sou para deixarem uma marca nesse exterior. Pudesse eu recolher-me a um canto interior e talvez tudo fosse mais fácil. O mundo continuaria lá fora, sem interferências minhas, e eu ficaria na minha concha, sem interferências fosse de quem fosse. Estaria afastado das banalidades quotidianas e manter-me-ia preso a um claustro plantado de ideias e regado com sensações. Como não posso fechar-me para toda a eternidade, escrevo. Torno o que é interior exterior para o fazer entrar outra vez na minha corrente sanguínea com uma força nova.

Foto de Rafaela Silva

  Talvez escrever seja um ato de paixão: ama-se tanto que se tem de escrever. Ama-se o que quer que seja: o mundo exterior, o mundo interior, a Vida, a Morte, a solidão, … Não importa o que se ama, mas ama-se. Talvez até se ame demasiado o mundo exterior, mas esse amor acaba por desembocar numa raiva alucinante quando denunciamos o estado calamitoso da realidade. Ama-se em demasia, pois amar com moderação permitiria um equilíbrio perfeito entre interior e exterior.
  Amarei porventura o mundo interior. Talvez goste mais dele do que de outra coisa qualquer. Porém, nesse mundo exterior, que me chega toldado pelo sono, pelo cansaço ou pelo abatimento, vejo sempre um pouco do que há para aproveitar. Cada dia nos traz uma nova luz, uma nova impressão, um novo nenúfar a pintar. A luz que cai lenta e lânguida do céu laminado assume cores diferentes a cada dia que chega. Leva o poente as impressões que nos causou essa luz única e corpórea para nos povoar com a noite sombria e fria. É a noite que faz valer o dia: sentimo-lo com outra força porque a noite é o seu contraponto.
  Vivemos por contrastes e, quanto maior é a nossa raiva e a nossa tristeza, mais conseguimos sentir a dança da efemeridade diária. Vivemos para nos traduzirmos, para sabermos traduzir esses sons inefáveis em fonemas materializáveis. Vivemos para escrever algo, para conseguir escrever com as mãos ou com a vida. Mas o “vivemos” já não significa tudo. Na verdade, não significa nada. Viver existe na medida em que nos encolhemos. Forçam-nos a reduzir-nos e nós amamos isso. Só escreve, só vive, só dança, só ama quem se rebela contra a redução da autonomia. Mas talvez isso seja viver também por contraste: sentimos, amamos e escrevemos por todos aqueles que não o fazem. É por isso que os artistas morrem com o mundo entalado nas suas gargantas: as palavras, os gestos e a força de espírito não chegam para albergar a magnificência da vida.
  Respira as flores e bebe a água das fontes...


Coroai-me de rosas!
Coroai-me de rosas!

Coroai-me em verdade

      De rosas!


Quero toda a vida

Feita desta hora

        Breve.


Coroai-me de rosas

E de folhas de hera,

        E basta!


Ricardo Reis (disponível em http://arquivopessoa.net/textos/2299)




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