Textos da quarentena 13
Sonata a duas mãos
Não estou num bom dia para leituras. Está chuva lá fora,
está frio cá dentro, cá bem no fundo. Não há aquecedores que me salvem. Não me
salva o Frédéric Moreau do Flaubert, nem o Cláudio do Vergílio Ferreira. Estava
tão bem na paz da manhã, a saborear o tempo cinzento, a beber imagens
esplendorosas, a ler umas páginas, a desfrutar do tempo – ou a perdê-lo,
depende.
Agora estou sem
paciência, não sei. Há momentos assim. A música acaricia-me suavemente, um
pouco, bastante. Salva-me um pouco das nevroses, do tédio, de tudo.
Efemeramente. Refugio-me na minha cabeça, nos dias bons, nos dias menos bons,
em chávenas de chá quentes que não me aquecem a alma, talvez apenas o corpo.
O dia está
solarengo. Vem uma brisa fria, mas não me incomodo. Saio de casa, vestido com
um longo casaco e um cachecol azulado, com um pouco de castanho. Não gosto de
castanho, mas este castanho é claro, doce, fica bem naquele mar de azul-noite.
Faço o meu caminho – qual caminho? Não tenho para onde ir. Vou deambular. Flâneur.
A cidade está
maravilhosa sob o frio de Janeiro. Claridade, aconchego, frio. Faz-me bem, não
sei. Sinto-me reunido à plenitude de me ser por instantes; talvez seja o vento
que me transporte, que me una a mim. As ruas vão cheias de pessoas como eu –
quem são? Quem sou? Passo por caras e caras, por montras e montras, entro até
numa loja com livros antigos. Têm coisas que me interessam; vou levar. Continuo
a minha passeata, a minha deambulação. Não é bom passear sem ter um fim
definido? Andar à deriva como as folhas, andar à deriva como andamos
quotidianamente, mas sabendo que andamos à deriva. Apanhamos metros,
autocarros, conduzimos carros e matamos o meio-ambiente só porque andar nos fez
ter consciência de nós. Quem quer ter consciência de si? Ver-se com os seus
pecados, falhas, qualidades, vitórias, humilhações? Quem anda vê-se, os outros
não sei: eles que me digam.
Estou em casa. Hoje
não veio realmente sol nenhum, nem um bocadinho. Onde estamos? Não interessa.
Fora do mundo terrestre para dentro do universo do tédio, da dor de cabeça, da
loucura, da genialidade, do enclausuramento. Deixem-me hoje. O problema é que
eu não me deixo a mim. Vejo fotografias tão bonitas, porque não estou eu nelas?
Arrasto-me pelos dias em esquemas, em planos, em banalidades burguesas. Vou
arrastando uma cauda de planos que ficam para trás. Mentira: vamos arrastando.
O sujeito é plural. Acharei que sou porventura o único, mas não é verdade.
O céu tinge-se de um
roxo forte que me seduz e se espalha por todo o horizonte. Há pedaços de rosa a
flutuar, de laranja também. Os campos estendem-se à minha frente, os pequenos
carreiros vão tomando as cores crepusculares e nós vamos seguindo a nossa marcha,
envoltos numa mancha de frio. Ao longe, avistam-se casas provinciais, de cores
esbatidas, mas de uma vitalidade surpreendente, onde se espanta o frio e se
deixa entrar o calor do lar. O caminho ainda não acabou para nós, temos de o
continuar até ao rio. Há um rio bastante perto, recolhido em árvores, como se
fosse uma alcova líquida. O som da água dá vontade de amolecer, de entrar num
langor profundo, do tamanho da inquietude.
Chego a casa, estava
melhor nas ruas da cidade. A cidade é uma loucura, uma brisa de contentamento,
uma azáfama, um aniquilamento prazeroso do ser. Misturar-se na multidão e sair
de lá intacto, procurar a solidão da multidão… Trouxe uns livros, mas não vou
começar estes agora; ando a ler outros. Ando a arrastar-me noutras leituras,
noutras leituras que acabarei porque o método. Queria voltar a estar no meio
dos outros, a sentir a brisa fria de janeiro no meu corpo, mas começa a
escurecer. O céu não está belo, porque haveria de estar?
Onde está o rio que
procuramos? Aquele! Aquele onde nos banharemos no final dos sacrifícios, das
lutas vencidas, das vitórias todas. Não o descobriremos nunca. Estaremos a
tempo de mudar? Já deixámos tanto tempo passar. Não estaremos a ser
impacientes? Não sei quanto a vocês, mas não queria ser o Frédéric. A
passividade, a frouxidão, a moleza, a falta de vontade… Somos todos como o
Frédéric? Esta vida custa tanto e, ao mesmo tempo, vale a pena vivê-la pelas
cores do crepúsculo, pela beleza destes passeios cheios de árvores frondosas,
resistentes ao frio do Inverno. Tão bom ver as flores a resistirem à tristeza
de Inverno. Quero também resistir à tristeza da vida, lutar, fazer algo. Mas o
quê? Cumprir-me, dizer: eu fiz! Eu consegui! Vale a pena? No final, morremos.
E, até lá, viveremos.
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