Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2020

Textos da quarentena 13

Sonata a duas mãos     Não estou num bom dia para leituras. Está chuva lá fora, está frio cá dentro, cá bem no fundo. Não há aquecedores que me salvem. Não me salva o Frédéric Moreau do Flaubert, nem o Cláudio do Vergílio Ferreira. Estava tão bem na paz da manhã, a saborear o tempo cinzento, a beber imagens esplendorosas, a ler umas páginas, a desfrutar do tempo – ou a perdê-lo, depende.   Agora estou sem paciência, não sei. Há momentos assim. A música acaricia-me suavemente, um pouco, bastante. Salva-me um pouco das nevroses, do tédio, de tudo. Efemeramente. Refugio-me na minha cabeça, nos dias bons, nos dias menos bons, em chávenas de chá quentes que não me aquecem a alma, talvez apenas o corpo.   O dia está solarengo. Vem uma brisa fria, mas não me incomodo. Saio de casa, vestido com um longo casaco e um cachecol azulado, com um pouco de castanho. Não gosto de castanho, mas este castanho é claro, doce, fica bem naquele mar de azul-noite. Faço o meu caminho – qual caminh

Textos da quarentena 12

Imagem
O Domínio da Língua Materna   Hesitei antes de escrever este texto, mas aqui vai ele! O tema de hoje é o do domínio da língua materna. Evidentemente, irei falar sobre o domínio do Português, que é a minha língua materna e também a língua materna de uma boa parte daqueles que leem os meus textos. Trata-se de uma reflexão fundamentada por experiências que tive e por observações que fui fazendo ao longo do tempo.    Sou formado na área das Línguas e Literaturas (Português/Francês) e talvez isso também influencie a forma como vejo o uso da língua materna. Ainda assim, acredito que dominar convenientemente o Português é um trunfo não só profissional, mas também psíquico.    Atualmente, muitos professores de Português sentem dificuldades em chamar a atenção dos alunos e em incutir-lhes o gosto da leitura, da escrita e da gramática. Será culpa das novas tecnologias que afastam os alunos da leitura tradicional? Será culpa de raciocínios básicos como "eu já falo esta líng

Textos da quarentena 11

Imagem
Tributo a Cesário Verde e a Álvaro de Campos     Acordo na doçura da manhã que me abraça e sinto-me em paz. Talvez seja uma paz momentânea. É realmente uma paz momentânea, pois dura apenas uns minutos enquanto a inconsciência consciente toma conta de mim.   De repente, desperto-me. Desperto-me e estou ao pé da estação de comboios, de onde contemplo o céu esbranquiçado, amarelado e frio que, de certa forma, me encanta. Olho para as infraestruturas que fazem parte da estação: contemplo os pilares, as linhas do caminho de ferro, os bancos, os televisores, os carris e os comboios que partem continuamente da estação, enquanto eu fico à espera.    A cor cinzentona e sórdida destes objetos, ou o branco já conspurcado que os envolve, não é bela e, no entanto, não me dói. Não me custa nada, pois que são símbolo da civilização moderna e dispersa, que se oculta atrás de mecanismos refulgentes, úteis e eficientes.   O comboio não se decide a chegar, mas eu decido-me a mirar os rostos

Textos da quarentena 10

Imagem
Pulvis Queria arrumar as minhas emoções Como quem arruma gavetas. Daquelas  De escritório, cheias de papéis que já ninguém sabe o que são.  Arrumar-me, engavetar-me, mas sem ordem;  Ou com uma ordem íntima, especial.  Pôr-me, desnudado, dissecado, num estendal:  A tirar o mofo, a pôr-me reluzente.  Luz.  Deixar entrar essa preciosa e pô-la a correr-me pela boca,  Como quem bebe o néctar dos Deuses.  Estou cansado, mas "cansado" já nada significa!  Até se pode estar cansado de nada fazer.  Estarei angustiado? Ansioso? Trémulo? Inquieto? Estou; mentira: SOU.  Força conjunta de retalhos, de emoções, de gritos que ecoaram para dentro.  A Luz há de morrer em mim.  Mesmo que entre.  Deixo-a entrar, mas ela sabe.  Sabe que morre no mar das angústias,  nesse mar teatralizado, dramatizado.  Sublimado.  Quis sublimar-me, elevar-me: Sou - somos - pó.  Pó que se pisa e que acaba no túmulo;  Pó que se descarta, que se amansa;  Pó que se aproveita, que se d

Textos da quarentena 9

Imagem
O Baú Mental Murnau, de Wassily Kandinsky   As cores. As cores deste quadro fazem-me lembrar dias iluminados, dias solarengos. Dias tipicamente portugueses. Também as cores deste quadro me fazem lembrar as cores portuguesas. O quadro não foi pintado em Portugal, mas a beleza da arte é precisamente esta: a de nos fazer pensar, sentir ou recordar coisas que não estão diretamente relacionadas com o que é representado. Podemos pensar no quadro em si, mas também podemos ir além. Podemos pegar naquilo que a arte nos oferece, podemos usufruir das suas sugestões e ir além daquilo que ela nos apresenta.    Creio que foi o amarelo o culpado. Talvez o azul também. Fizeram-me lembrar casas amarelas que vi em Coimbra ou até noutras cidades portuguesas. Casas para as quais olhei, mas que não vi . Olhei para elas só com os olhos, sem nunca pensar naquilo que significavam, naquilo que significam, naquilo que sugerem . Talvez toda a mistura de cores me tenha feito pensar no meu país. T

Textos da quarentena 8

Imagem
Jogo de sombras   Tudo é sombra. Apenas vejo os contornos de alguns objetos. Uma cadeira, uma cómoda, uma pasta com papéis, uma porta, cortinas a esvoaçar conduzidas pela mão do vento…   Mais um dia de Verão que chega ao fim. Mais um dia de Verão do qual não sobra mais nada a não ser a sombra que fica e as parcas luzes que se vão. No meio destes corredores abafados, sem luz alguma a não ser aquela que o céu ainda tem forças para enviar, perco-me em suores que não sei. Observo janelas nos quartos onde poderia entrar, as cómodas onde poderia ter assentado as minhas coisas, sinto-me como que numa flutuação.   Alguém acendeu uma luz. Vou apagá-la. Neste jogo de luz e sombras, quero tornar-me um espetro, sentir os tons da luz como se fosse Monet a pintar os seus nenúfares de sedução. Capturar o efémero porque só ele nos interessa. Só ele nos é e só ele dá sentido ao que é eterno, constante, comum, basilar…   A luz está apagada. Bebo da sombra como se não pudesse beber mais nada

Textos da quarentena 7

Imagem
Os Modismos Linguísticos   Não é à toa que se diz que uma língua é viva ou que uma língua é morta. Uma língua viva, por definição, é falada por vários indivíduos - uma parte deles nativos, mas não só - e vive efetivamente. Vive, na medida em que precisa de se adaptar aos tempos, às necessidades e às ideias das diferentes épocas para ser um verdadeiro instrumento de comunicação. Uma língua viva é, portanto, uma língua que está em contacto com outras e é ainda uma língua que tem os seus gostos, as suas manias e as suas particularidades, um bocadinho como cada um de nós.    Como afirmei anteriormente, uma língua viva está em contacto com as outras. Vamos, então, passar à língua que quero pôr aqui em destaque hoje: o Português. O Português está em contacto com outras línguas há muito tempo. Temos fronteiras com Espanha, portanto, convivemos com os dialetos do outro lado da península desde há muito tempo, mas a nossa língua também esteve em contacto com outras um pouco mais distante

Textos da quarentena 6

Imagem
Mulheres no jardim Femmes au jardin, de Claude Monet Mulheres no jardim, de Claude Monet   Não estou no jardim. Não naquele que tu vês. Estava ali à mesma hora, mas estava escondido. Decidiram, por isso, pôr-me de parte. Esquecer-me. Não me sinto triste; afinal, é essa a estética do Impressionismo... O essencial é captar os momentos em toda a sua beleza, em toda a sua magia e em toda a sua luz. Pouco importa se eu estou ou não na composição, visto que não fiz parte da impressão que se queria veicular.    No entanto, lembro-me bem desse dia. A Primavera acabara de se instalar. O sol começava a aparecer mais vezes e os dias tornavam-se tépidos e limpos. As flores apareciam, como se pode ver naquela planta por trás da árvore majestosa. O branco dos vestidos confundia-se com o branco das flores e sobressaía ainda mais devido à luz solar. Tudo parecia leve. Só eu é que não me sentia assim. Eu não me sentia mais leve. Talvez me sentisse ligeiramente menos perturbado do que n

Textos da quarentena 5

Imagem
Inefabilidade distópica   Estávamos numa das ruas de Rouen. Penso que seria a Rue Saint-Romain, que nos leva desde a magnífica catedral até à igreja Saint-Maclou. Estávamos ali, envolvidos pelas gárgulas da catedral e pelo aspeto simultaneamente sombrio e belo que emana dos monumentos góticos. O céu estava a pôr-se e as cores de que se revestia fizeram-me lembrar o meu terraço, a mais de 1500 km de distância. Não eram as mesmas cores. Não era a mesma luz. Ali, havia uma luz setentrional, menos branca, em que os tons escuros sobressaíam mais, ainda que os tons claros não tivessem desaparecido totalmente. Estávamos noutra latitude, estávamos noutro universo luminoso, o que não me impediu de pensar nos vários pores do sol que havia contemplado do terraço da minha casa.   Creio que as reminiscências são assim: vêm quando menos se espera, por coisas mínimas. Lembramo-nos de gestos, de sensações, de pessoas, de palavras, de ideias e de momentos devido a pequeníssimos acontecimen

Textos da quarentena 4

Imagem
Vivemos por contrastes   Talvez todos os computadores e relógios desta casa marquem a mesma hora. São 23:18 de uma noite de março, mais uma que se perderá nos anais do tempo. Mais uma noite em que os corpos cansados suspiram pelo abraço dos lençóis e pelo doce embalo do sono. Suspiraria eu também se soubesse que poderia dormir descansado e acordar fresco na manhã seguinte, prestes a colher a beleza do dia. Como tenho receio de que a noite não me embale inteiramente nos seus braços, dedico-me à escrita, pois sei que saberei apreciar o fruto de amanhã, venha ele revestido de inúmeras horas de sono ou não.   Escrever é um bálsamo que funciona como um vidro. É usando palavras, procurando sentidos e arrancando verdades do coração que o nosso edifício interior faz uma ponte com o desconcertante mundo exterior. Vejo a rua por dentro e por fora em simultâneo. As sombras do interior não se projetam apenas em mim: elas saem do que eu sou para deixarem uma marca nesse exterior. Pudesse eu

Textos da quarentena 3

Imagem
Personalidade social proustiana   Comecei ontem a ler Marcel Proust. Já há muito tempo que o desejava fazer, mas a falta de tempo ou o medo de entrar na obra de um escritor tão reputado e muitas vezes considerado difícil impediu-me de o fazer mais cedo. Proust tem de se ler devagar. As suas frases são tão magníficas quanto exigentes. Até agora, ainda assim, a fruição estética tem prevalecido e estou apenas no segundo dia de leitura. Por esse motivo, partilho aqui uma citação que me agradou particularmente e sobre a qual tecerei uma reflexão. Nada temam: a citação está em francês, mas vou traduzi-la para a compreensão de todos.    " Mais même au point de vue des plus insignifiantes choses de la vie, nous ne sommes pas un tout matériellement constitué, identique pour tout le monde et dont chacun n'a qu'à aller prendre connaissance comme d'un cahier des charges ou d'un testament; notre personnalité sociale est une création de la pensée des autres. " - D

Textos da quarentena 2

Imagem
A Primavera   Devo, desde já, avisar o estimado leitor de que a quarentena forçada, a reclusão total dentro das paredes do meu quarto me tem deixado num estado de espírito estranhíssimo. Uma espécie de nervosismo "fin-de-siècle", só que menos interessante, menos poético, menos interessante para a fruição estética. Não é a primeira vez que tenho esta sensação. Sempre gostei de estar em casa, mas não assim. Antes, podia sair quando quisesse, tinha liberdade de o fazer; agora vejo essa liberdade extremamente limitada. No entanto, estas frases que para aqui estou a lançar não importam nada. Vamos ao tema de hoje: a Primavera!   Acordei cedo hoje. Saí do meu quarto para comer e voltei a trancar-me na minha fortaleza. Peguei no telemóvel, percorri as redes sociais e dei de caras com um artigo do jornal italiano La Repubblica em que se anunciava o início da primavera. Aparentemente, às 03h50 do dia de hoje, o equinócio de Março teve lugar, o que significa que estamos na Primaver

Textos da quarentena 1

Imagem
A Beleza Absoluto-Linguística   Afirma o professor Frederico Lourenço que a beleza absoluta existe e que surgiu sob a forma do latim. Deixarei a confirmação desta hipótese aos que dominam melhor a língua de Tito Lívio do que eu. Ainda assim, não posso deixar de concordar enquanto estudante e grande apaixonado da língua portuguesa, da língua francesa e, desde há 4 meses, da língua italiana. Também sei um pouco de Espanhol, mas percebo mais do que escrevo ou falo.   Não há, para mim, grandes dúvidas de que o Latim tem de ser a beleza absoluta, caso contrário as línguas latinas não seriam tão belas, tão poéticas, tão elegantes - cada uma à sua maneira. Ainda que os meus conhecimentos explícitos de Latim sejam básicos, não posso dizer que não sei nada de Latim. A minha língua materna é o Português e, ainda que tenha aprendido línguas não latinas ao longo da minha vida, só as latinas me seduziram por completo.    Para perceberem onde quero chegar, terei de começar pela primeira lín