Textos da quarentena 12

O Domínio da Língua Materna

  Hesitei antes de escrever este texto, mas aqui vai ele! O tema de hoje é o do domínio da língua materna. Evidentemente, irei falar sobre o domínio do Português, que é a minha língua materna e também a língua materna de uma boa parte daqueles que leem os meus textos. Trata-se de uma reflexão fundamentada por experiências que tive e por observações que fui fazendo ao longo do tempo. 
  Sou formado na área das Línguas e Literaturas (Português/Francês) e talvez isso também influencie a forma como vejo o uso da língua materna. Ainda assim, acredito que dominar convenientemente o Português é um trunfo não só profissional, mas também psíquico. 
  Atualmente, muitos professores de Português sentem dificuldades em chamar a atenção dos alunos e em incutir-lhes o gosto da leitura, da escrita e da gramática. Será culpa das novas tecnologias que afastam os alunos da leitura tradicional? Será culpa de raciocínios básicos como "eu já falo esta língua, logo, não preciso de a estudar"? Ou então: para quê estudar Fernando Pessoa se não quero saber mais sobre poesia? Creio que há vários fatores a ter em conta; porém, aquilo que quero desde já salientar é que não estudamos a nossa língua materna na escola apenas porque alguém se lembrou! Dominar a nossa língua materna é conhecer não só a sua estrutura e as suas regras gramaticais, mas também perceber que a língua está ao serviço do nosso pensamento. Quando pensamos, pensamos numa língua. Podemos pensar em várias, mas não ao mesmo tempo. Geralmente, recorremos à nossa língua materna para pensarmos ou, se não o fazemos sempre, acabamos por recorrer a ela em momentos de maior cansaço. 
  A nossa língua materna faz-nos ver o mundo de um modo particular, razão pela qual, quando aprendemos novas línguas, aprendemos novas maneiras de estar no mundo. Aprender Inglês, Alemão ou Espanhol não é apenas aprender regras gramaticais novas, mas, sim, entrar num modo de pensar diferente. Assim como as línguas não usam as mesmas estruturas, também nós não pensamos exatamente da mesma forma. Ainda assim, no caso das línguas europeias, os aspetos em comum são imensos. Porém, basta pensarmos que, em certas línguas, o cor-de-rosa não existe e é equiparado a uma nuance do vermelho para percebermos até que ponto a nossa mente está formatada para uma certa e determinada língua. 

A importância do domínio do português no mercado de trabalho ...
  
  No caso do Português, por exemplo, e se o compararmos a línguas como o Alemão e o Francês, notamos que o uso de estruturas progressivas ("está a comer" e "fui perdendo") é muito mais frequente na língua de Camões do que na de Schiller ou na de Molière. O que quererá isto dizer em termos de pensamento? Talvez que, em Português, insistamos mais no aspeto progressivo da ação do que na ação em si, o que poderia ser interpretado como um traço cultural de alguma passividade, de menos "objetividade" nas ações. Evidentemente, a interpretação que damos depende do contexto em que as frases são produzidas e, na verdade, estas estruturas também demonstram a riqueza da língua portuguesa: mais do que aquilo que lhes subjaz culturalmente, estas expressões mostram a flexibilidade da nossa língua, algo que, numa tradução para Francês ou Alemão, se perderia. 
  Estudar a nossa gramática não é algo que deva ser visto como maçador ou inútil. Muitos afirmam que saber as diferentes orações subordinadas não lhes vale de nada. Enganam-se. Ainda que não usem esse conhecimento explícito da gramática diariamente, perceber as nuances de sentido entre as orações é algo que nos ajuda a interpretar melhor o que os outros dizem ou escrevem. Também nos ajuda a nós a perceber melhor de que forma usamos a língua e de que modo podemos melhorar a mensagem que pretendemos transmitir. Por exemplo, perceber que "Se tu vieres hoje, não sairei de casa" é uma oração subordinada adverbial condicional, ou seja, que exprime uma hipótese, uma condição para que a ação de "não sairei de casa" se realize, ajuda-nos a distinguir o valor de outros "se" que podem aparecer no dia a dia. Outro exemplo: "Se, num primeiro momento, a história é interessante, cedo deixamos de ter interesse nela". Neste caso, a conjunção "Se" significa "Embora"/"Ainda que". Mesmo que não saibamos explicar qual é a diferença, o facto de conseguirmos notar que ela existe já nos pode ajudar a interpretar melhor a intenção do nosso interlocutor. 
  Em relação aos textos literários estudados em aula de Língua Materna, a falácia de que não precisaremos deles porque queremos estudar áreas diferentes não tem, a meu ver, grande validade. Em primeiro lugar, porque esses textos permitem-nos adquirir cultura geral. Em segundo lugar, porque são documentos oriundos de momentos específicos da nossa cultura e, por conseguinte, da nossa história, inserindo-se não só num determinado movimento estético (Romantismo, Realismo, etc), mas também numa época em que predominavam outros valores. Por último, estudar Literatura é uma forma de entrar em contacto com o uso mais nobre da língua portuguesa. Utilizamos a língua para ir ao supermercado e para falarmos com os nossos amigos de um modo prático, útil, com um objetivo de comunicação. Ao lermos grandes textos, entramos em contacto com um registo de língua artisticamente trabalhado que nos torna mais sensíveis aos discursos e aos textos que lemos. Também nos dá mais vocabulário e estruturas para nos podermos expressar em situações formais, nas quais importa utilizar uma linguagem mais cuidada. Além disso, a Literatura é uma arte, funcionando, por conseguinte, como uma ponte para acedermos ao belo e ao sublime. A arte pode não ser imediatamente útil para a vida, mas não conseguimos viver sem ela porque ela nos consola e nos engrandece. 
  O que quero, essencialmente, transmitir com este texto é que dominar a nossa língua materna é uma forma de conhecermos o nosso pensamento e de entrarmos em contacto com a Arte. Também é uma forma de acedermos a outras línguas, a outras formas de pensar e a outras formas de estar na vida. Foi graças ao meu domínio da gramática portuguesa que compreendi a gramática inglesa e a francesa, por exemplo. Dominar a nossa língua também implica ter mais bases para nos podermos exprimir, seja de que forma for. Não podemos pensar que estudar Português não serve para nada quando somos confrontados diariamente com palavras. Palavras que, seja em que suporte for, necessitam da nossa interpretação. Último conselho: a Literatura é uma forma de compreender melhor o ser humano e as suas intenções. É ao lermos que vamos percebendo um pouco melhor a nossa alma e, claro, a dos outros. 
  Valorizem a vossa língua materna.

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