Textos da quarentena 10

Pulvis

Queria arrumar as minhas emoções
Como quem arruma gavetas. Daquelas 
De escritório, cheias de papéis que já ninguém sabe o que são. 
Arrumar-me, engavetar-me, mas sem ordem; 
Ou com uma ordem íntima, especial. 

Pôr-me, desnudado, dissecado, num estendal: 
A tirar o mofo, a pôr-me reluzente. 
Luz. 
Deixar entrar essa preciosa e pô-la a correr-me pela boca, 
Como quem bebe o néctar dos Deuses. 

Estou cansado, mas "cansado" já nada significa! 
Até se pode estar cansado de nada fazer. 
Estarei angustiado? Ansioso? Trémulo? Inquieto?
Estou; mentira: SOU. 
Força conjunta de retalhos, de emoções, de gritos que ecoaram para dentro. 

A Luz há de morrer em mim. 
Mesmo que entre. 
Deixo-a entrar, mas ela sabe. 
Sabe que morre no mar das angústias, 
nesse mar teatralizado, dramatizado. 
Sublimado. 
Quis sublimar-me, elevar-me:
Sou - somos - pó. 

Pó que se pisa e que acaba no túmulo; 
Pó que se descarta, que se amansa; 
Pó que se aproveita, que se desconcerta. 
Pó. 

A luz entrou. O pó não sai. Nunca. 
Tornar-me cristalino, resplandecente. 
Nunca.
Não há diamantes. Enfiem-me a luz pela garganta. 
Talvez morra sufocado num instante, 
Sem ser pelo pó.





1 de julho de 2019
Nuno Neves

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