Textos da quarentena 8

Jogo de sombras

 Tudo é sombra. Apenas vejo os contornos de alguns objetos. Uma cadeira, uma cómoda, uma pasta com papéis, uma porta, cortinas a esvoaçar conduzidas pela mão do vento…
  Mais um dia de Verão que chega ao fim. Mais um dia de Verão do qual não sobra mais nada a não ser a sombra que fica e as parcas luzes que se vão. No meio destes corredores abafados, sem luz alguma a não ser aquela que o céu ainda tem forças para enviar, perco-me em suores que não sei. Observo janelas nos quartos onde poderia entrar, as cómodas onde poderia ter assentado as minhas coisas, sinto-me como que numa flutuação.
  Alguém acendeu uma luz. Vou apagá-la. Neste jogo de luz e sombras, quero tornar-me um espetro, sentir os tons da luz como se fosse Monet a pintar os seus nenúfares de sedução. Capturar o efémero porque só ele nos interessa. Só ele nos é e só ele dá sentido ao que é eterno, constante, comum, basilar…
  A luz está apagada. Bebo da sombra como se não pudesse beber mais nada. Derreto-me nas paredes, enfio-me nos cantos, procuro sofregamente a parca luz que vem do céu, até que chego enfim aqui.


  Aqui, neste sítio que não sei qual é. Mas onde sei que estou em casa. Em casa porque dentro de mim. Dentro do meu estado de ser, da minha interioridade plena, aquela que nunca ninguém poderá ou quererá roubar, pois que nunca a compreenderia. Somos conchas dentro de nós mesmos, a tentar voltar para o mar. Mas o nosso mar teve de desaparecer…
  Estas janelas que vejo trazem-me tudo o que eu preciso. O ar da paz, a pouca luz dos candeeiros da rua ao longe, a visão do céu negro, onde rebentam as nuances cor de laranja, vermelhas e arroxeadas. Um vermelho cor de veludo penetra-me nas veias e nos olhos. Entra em mim e toma conta do que se reflete. Não há nada a não ser projeções…
  A vida são projeções deste céu queimado, deste dia abafado, deste momento inefável em que as cores do céu são da minha cor. Em que o vermelho se torna cor de veludo e o laranja estala no meu cérebro como uma travessa cheia de água perfumada onde eu poderia, talvez, nadar até ao ser.
  E perco-me continuamente nestas palavras, neste céu, nestas nuances e nestes tons. Sinto-me até ao fim com estas cores cheias de amor, de paixão, de fúria, de raiva em mim! Sento-me na sombra e não vejo nada a não ser esboços, fragmentos.
  Arrasto-me ao longo das janelas e toco nos vidros. Estico os braços e cheiro o ar pesado de solidão e sombra. Queimo-me por dentro como uma floresta e digo adeus ao que é da vida.
  E pudera eu continuar infindavelmente a ver este céu e estas matizes, a pintá-las no meu ser como se elas conseguissem ser pintadas… E pudesse eu perder-me nas janelas, no canto dos pequenos animais que se renascem no Verão… E pudesse eu mergulhar nos meus delírios de sombra, de paz, de beleza! E pudesse eu viver este momento para sempre… Para sempre saber que há paz no céu de que me sou!
  E talvez, quem sabe, isso seja possível. Talvez me case com as sombras, me cruze com os becos imundos, me erga para o céu. Talvez me incendeie para mostrar ao céu as minhas verdadeiras cores, como ele conseguiu dizer-me as nuances que me constituem até à amargura…



Escrito em julho de 2017

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