Textos da quarentena 3

Personalidade social proustiana

  Comecei ontem a ler Marcel Proust. Já há muito tempo que o desejava fazer, mas a falta de tempo ou o medo de entrar na obra de um escritor tão reputado e muitas vezes considerado difícil impediu-me de o fazer mais cedo. Proust tem de se ler devagar. As suas frases são tão magníficas quanto exigentes. Até agora, ainda assim, a fruição estética tem prevalecido e estou apenas no segundo dia de leitura. Por esse motivo, partilho aqui uma citação que me agradou particularmente e sobre a qual tecerei uma reflexão. Nada temam: a citação está em francês, mas vou traduzi-la para a compreensão de todos. 

  "Mais même au point de vue des plus insignifiantes choses de la vie, nous ne sommes pas un tout matériellement constitué, identique pour tout le monde et dont chacun n'a qu'à aller prendre connaissance comme d'un cahier des charges ou d'un testament; notre personnalité sociale est une création de la pensée des autres." - Du côté de chez Swann, Marcel Proust
  [Mas mesmo do ponto de vista das coisas mais insignificantes da vida, nós não somos um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e do qual cada um só tem de tomar conhecimento como de um caderno de encargos ou de um testamento; a nossa personalidade social é uma criação do pensamento dos outros.]

  Proust ousou escrever, no início do século XX, aquilo que muitos já haviam tentado afirmar ou que já haviam até afirmado. No entanto, se pensarmos no início do século XX como a época do Modernismo e da Psicanálise, poderemos ver até que ponto aquilo ele que disse abriu novos conhecimentos, não apenas literários, mas também psicológicos. 
  De certa forma, todos nós sabemos que isto é verdade. Nós somos o que os outros veem em nós, pelo menos quando estamos em sociedade. Somos feitos dos olhares dos outros, das considerações que os outros tecem de nós e, no meio disso tudo, estará um pouco de quem nós efetivamente somos ("Nous remplissons l'apparence physique de l'être que nous voyons de toutes les notions que nous avons sur lui, et dans l'aspect total que nous nous représentons, ces notions ont certainement la plus grande part." - Marcel Proust, mesma obra - Nós preenchemos a aparência física do ser que vemos com todas as noções que temos sobre ele e no aspeto total que representamos a nós mesmos, essas noções ocupam certamente a maior parte.)
  É de salientar, no entanto, que, na citação supra, Proust declara que a nossa aparência física é preenchida pelas noções - sentimentais, afetivas ou até psicológicas - dos outros. Não se trata apenas de vermos os outros de forma diferente a nível psicológico porque os conhecemos; trata-se também de ver o seu físico de modo diferente. Costuma-se dizer "quem feio ama bonito lhe parece". Creio que é essa a lição a tirar do que diz Proust: o nosso lado afetivo impõe as suas noções ao aspeto físico daquele que está diante de nós e, claro, também as impõe ao lado psicológico dessa pessoa. 
  Aliás, não nos esqueçamos de que temos tendência a ver os outros como nós somos, não como eles são. É preciso fazermos um exercício de abstração, é preciso, como diria Pessoa, "outrarmo-nos" para conseguirmos chegar ao âmago do outro. Não significa isto que estejamos errados ao ver os outros de acordo com os nossos olhos. Errados não podemos estar porque o fazemos naturalmente e, na maior parte dos casos, sem maldade. Não podemos é esquecer-nos de que a nossa visão é apenas isso - uma visão. Uma visão que até pode ser muito bem fundamentada, mas que não passa de uma visão, de um reflexo
  O que acho interessante ainda na primeira citação de Proust - que é aquela que abre este texto - é o facto de afirmar que a nossa personalidade social é uma criação dos outros. Proust continua esta sua digressão, mostrando que são os outros que nos preenchem, como já mencionei. Porém, há uma questão que quero ainda colocar: será que nós próprios não construímos também uma máscara quando estamos em sociedade? Será que não construímos essa máscara usando como materiais as ideias, os pensamentos, os desejos e os sentimentos daqueles que nos vão ver ou ouvir? Talvez por esse motivo estar em público seja, em certa medida, interpretar uma personagem. Creio que, na psicologia, abordam o conceito de "personagem social", algo que Proust soube identificar e analisar há mais de cem anos. 
  Para terminar este texto, farei alusão a um provérbio japonês - creio - relativo às nossas máscaras ou personalidades. Nesse provérbio, diz-se que os homens têm três personalidades: a primeira perante os outros/a sociedade; a segunda perante a família; a terceira é aquela que só aparece quando cada um de nós está sozinho, sem interferências exteriores. Creio que é um pouco verdade, ainda que prefira pensar que cada um de nós tem uma única personalidade, com inúmeras variações e facetas, tal como uma bela melodia clássica. Talvez o isolamento social nos obrigue a (voltar a) conhecer o nosso verdadeiro eu - será que temos um? A pergunta fica para vocês. 

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