Textos da quarentena 9

O Baú Mental

Murnau, de Wassily Kandinsky


  As cores. As cores deste quadro fazem-me lembrar dias iluminados, dias solarengos. Dias tipicamente portugueses. Também as cores deste quadro me fazem lembrar as cores portuguesas. O quadro não foi pintado em Portugal, mas a beleza da arte é precisamente esta: a de nos fazer pensar, sentir ou recordar coisas que não estão diretamente relacionadas com o que é representado. Podemos pensar no quadro em si, mas também podemos ir além. Podemos pegar naquilo que a arte nos oferece, podemos usufruir das suas sugestões e ir além daquilo que ela nos apresenta. 
  Creio que foi o amarelo o culpado. Talvez o azul também. Fizeram-me lembrar casas amarelas que vi em Coimbra ou até noutras cidades portuguesas. Casas para as quais olhei, mas que não vi. Olhei para elas só com os olhos, sem nunca pensar naquilo que significavam, naquilo que significam, naquilo que sugerem. Talvez toda a mistura de cores me tenha feito pensar no meu país. Talvez o sol. Talvez não haja um elemento concreto ao qual possa apontar o dedo. "A culpa morre solteira" - numa inversão irónica utilizo esta frase. 
  Vivi cinco meses e meio em França. Estava previsto passar lá mais tempo, mas não aconteceu. A pandemia veio meter-se entre mim e o fim do meu projeto. Tant pis! (em português, diria, para acrescentar um pouco de sal e pimenta: "Santa paciência"!). Ao início, o deslumbramento tomou conta de mim; o banho cultural e linguístico francófono apoderaram-se do meu ser. Com o tempo, esse deslumbramento esmoreceu. Aproveitei tudo o que tinha a aproveitar, mas, a certa altura, apercebi-me de que não era ali o meu lugar. Também não sei onde é. Talvez tudo isto seja uma mera questão linguística: adoro Francês, tenho um bom nível de Francês, mas também adoro Português. Foi a língua portuguesa que me embalou, foi ela que me acolheu nos seus braços desde sempre. Foi graças a ela que me apaixonei pela Literatura, pelas regras gramaticais e pelas dúvidas linguísticas. Foi ela a ponte para todas as outras línguas que se sucederam e que, eventualmente, se sucederão na minha existência. 
  Mas será apenas uma questão linguístico-afetiva? Não será também uma questão social, pessoal, sentimental. Sentia saudades do sentimentalismo lusitano, das expressões populares, até de certos defeitos tive saudades! O mais curioso disto tudo, no entanto, foi que só no estrangeiro conheci melhor o meu país. Já o conhecia e tinha interesse nele. Estudei Português na Faculdade e abracei esta língua com toda a força, ainda que, em certos momentos, pensasse que a minha paixão por ela era menor. Era mentira. Não foi por ter gostado mais de Francês em certos momentos que deixei o Português para trás. Talvez fosse um mecanismo provocado pela minha língua materna. Talvez ela me levasse a outros portos para que depois eu a pudesse observar com um novo espírito. Além disso, foi no estrangeiro, quando tive de explicar certos aspetos sociais, culturais ou políticos do meu país, que tive o distanciamento intelectual suficiente para os perceber em absoluto. Ali, via os assuntos de um modo mais racional. Ao refletir sobre o meu país, acabei por refletir sobre as suas virtudes e defeitos e, sobretudo, por que motivo existem essas virtudes e esses defeitos. 
  Também senti falta do sol, das cores das casas, das pequenas coisas. De ir ao café e encontrar certos doces e comidas. De ir à rua e falar Português por instinto. De poder comunicar tudo o que me ia na minha alma (como se alguma vez pudéssemos dizer tudo o que vai dentro de nós) na língua pátria. Tive saudades de certos monumentos, de certas feições das nossas ruas, que ainda hoje não sei descrever. Não sei defini-las em absoluto, mas sinto-as. 
  Sinto-as. É o sentimento que me leva a pensar nas casas portuguesas ao ver um quadro de Kandinsky, que nem nunca deve ter posto os pés em terras lusitanas. Foi ao sentir, visualmente e mentalmente, o sol nas ruas e as grandes manchas de cores que me lembrei de certos pormenores arquitetónicos em Portugal. Cruzei-me com uma fotografia de Coimbra esta manhã e dei por mim a aproximá-la desta pintura de Kandinsky. Vi aquelas casas como nunca as vira anteriormente. Também não tenho a certeza de que as voltarei a ver como as vi hoje. Hoje representei-me essas casas mentalmente, devido a um esforço de abstração, de visualização e também com o auxílio de fugazes sensações ou mesmo sentimentos. Quando as vir novamente cara a cara, talvez me provoquem outras emoções, que serão, mais tarde, desencadeadas por outros quadros, outras fotografias ou outras passagens textuais. A memória é exatamente como Proust a descreve: é a célebre história da madalena ensopada no chá. Devido a essa madalena, o protagonista recorda-se de uma parte da sua vida que havia ficado encerrada na sua psique. De uma forma menos acentuada, mas com um efeito análogo, assim aconteceu comigo quando vi esta pintura e quando a comparei a uma fotografia vista por acaso. 
  A vida é uma digressão mental. Um autêntico labirinto em que nos vamos perdendo, sem sabermos sequer que nos perdemos. É graças a pequenos objetos que encontramos nesse labirinto que a nossa memória se reativa e nos permite ir ao fundo do nosso baú mental. Foi o que esta imagem fez por mim e - confesso - a recordação que ela me provocou não poderia ter sido mais bela. Senti-me numa rua ensolarada da Lusitânia. Em breve, voltaremos a ver essas ruas. A senti-las. Até lá, salvem-nos as obras de arte!

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