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A mostrar mensagens de 2020
  Eu quero minha alma sondar   Mergulhar nas ondas desse mar,    Tenebroso elemento e só,    Do qual se deve ter dó.    Almejo da psique o saber,    Perceber os meandros do ser   De onde o constante pensar vem,    Como ele sempre vai mais além.    Será possível uma resposta?    Ou não alcançamos a dura encosta?    Eterna busca, a minha.    Como descobrir o segredo?!    Mas sigo com força, sem medo:    Somos um cristal por descobrir...

Poema

Deixo que a claridade me cegue.  Não adianta lutar contra ela, berrar, revoltar-me,  Assim é, assim a aceito.  Maio chegou e, com ele, uma claridade feroz Uma claridade que nos atinge a nós. Todos.  Todos a recebem, todos são encadeados por ela  Não adianta escaparmos como uma ferida gazela...  O branco queirosiano das casas refulgentes,  A seiva bruta das plantas,  O cheiro do campo e do dourado Sol,  A minha cabeça e os meus olhos tão cansados quanto fascinados.  Amo esta luz que me fere.  Talvez a ame por minha não ser,  Por ter de a aceitar.  Aceito-a como aceito o absurdo do mundo:  às vezes esperneio contra ele, mas  não adianta.  Hoje o dia é de sol,  Talvez a chuva venha aí um dia destes...  Talvez...  Perco-me nestas conversas dubitativas de uma época dubitativa.  Amanhã hei de acordar (porventura)  E ver o dia que se ergue contra a minha insignificância  E hei de o aceitar, nem que seja à força porque assim se nos mostra o mundo...  Se houve

Adeus

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Passear nas minhas ruínas   Quando vivia em Rouen, costumava ir, aos domingos, ao "Jardin des Plantes". Talvez não fosse todos os domingos, mas ia lá muitas vezes quando o tédio domingueiro se apoderava de mim e o ar fresco era o único bálsamo disponível. Mentiria se dissesse que é o mais belo parque que vi em toda a minha vida, mas era agradável. Era agradável sobretudo porque eu estava lá, naquela bela cidade que me acolheu. Uma cidade bonita, com cores medievais e oitocentistas, ainda que o seu clima nem sempre me fizesse sorrir.    Tenho saudades desses domingos em que o tédio me inspirava sentimentos ora de tristeza ora de solidão. Como é possível sentir falta de algo assim? Creio que sinto falta do que esses momentos representam porque eles me representam. Representam uma parte de mim que ficará para sempre em França. Mesmo que um dia volte a passar por lá - assim o espero! -, as coisas não serão idênticas. Eu já não serei o mesmo e aquilo que Rouen tiver gu

Textos da quarentena 14

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Amanhã é um novo dia   A minha quarentena chegou ao fim. Chegou ao fim de uma maneira estranha, uma vez que deixei de estar trancado no meu quarto para poder apenas deslocar-me para as outras divisões da casa, nas quais passava anteriormente menos tempo – ou quase nenhum, para ser sincero. A chuva cai lá fora e sinto-me vagamente nervoso, triste, esquisito. Entediado? Não creio. Talvez perdido nos meandros frios da minha mente.   Passei dias a fio quase sempre dentro do meu quarto. Não me posso queixar. Tenho um quintal, por isso, pude apanhar ar algumas vezes. Estudei Italiano. Voltei a pegar nos meus livros de Latim e descobri que tinha saudades do desafio mental que é estudar a língua em que escreveu Séneca. Li Proust. Fui à Internet. Entretive-me como pude e, até certo ponto, correu bem. Gostei da solidão, gostei da companhia dos livros. Talvez precisasse da solidão depois de dias de ansiedade infindável num país estrangeiro. Talvez precisasse de me fechar dentro do meu qu

Textos da quarentena 13

Sonata a duas mãos     Não estou num bom dia para leituras. Está chuva lá fora, está frio cá dentro, cá bem no fundo. Não há aquecedores que me salvem. Não me salva o Frédéric Moreau do Flaubert, nem o Cláudio do Vergílio Ferreira. Estava tão bem na paz da manhã, a saborear o tempo cinzento, a beber imagens esplendorosas, a ler umas páginas, a desfrutar do tempo – ou a perdê-lo, depende.   Agora estou sem paciência, não sei. Há momentos assim. A música acaricia-me suavemente, um pouco, bastante. Salva-me um pouco das nevroses, do tédio, de tudo. Efemeramente. Refugio-me na minha cabeça, nos dias bons, nos dias menos bons, em chávenas de chá quentes que não me aquecem a alma, talvez apenas o corpo.   O dia está solarengo. Vem uma brisa fria, mas não me incomodo. Saio de casa, vestido com um longo casaco e um cachecol azulado, com um pouco de castanho. Não gosto de castanho, mas este castanho é claro, doce, fica bem naquele mar de azul-noite. Faço o meu caminho – qual caminh

Textos da quarentena 12

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O Domínio da Língua Materna   Hesitei antes de escrever este texto, mas aqui vai ele! O tema de hoje é o do domínio da língua materna. Evidentemente, irei falar sobre o domínio do Português, que é a minha língua materna e também a língua materna de uma boa parte daqueles que leem os meus textos. Trata-se de uma reflexão fundamentada por experiências que tive e por observações que fui fazendo ao longo do tempo.    Sou formado na área das Línguas e Literaturas (Português/Francês) e talvez isso também influencie a forma como vejo o uso da língua materna. Ainda assim, acredito que dominar convenientemente o Português é um trunfo não só profissional, mas também psíquico.    Atualmente, muitos professores de Português sentem dificuldades em chamar a atenção dos alunos e em incutir-lhes o gosto da leitura, da escrita e da gramática. Será culpa das novas tecnologias que afastam os alunos da leitura tradicional? Será culpa de raciocínios básicos como "eu já falo esta líng

Textos da quarentena 11

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Tributo a Cesário Verde e a Álvaro de Campos     Acordo na doçura da manhã que me abraça e sinto-me em paz. Talvez seja uma paz momentânea. É realmente uma paz momentânea, pois dura apenas uns minutos enquanto a inconsciência consciente toma conta de mim.   De repente, desperto-me. Desperto-me e estou ao pé da estação de comboios, de onde contemplo o céu esbranquiçado, amarelado e frio que, de certa forma, me encanta. Olho para as infraestruturas que fazem parte da estação: contemplo os pilares, as linhas do caminho de ferro, os bancos, os televisores, os carris e os comboios que partem continuamente da estação, enquanto eu fico à espera.    A cor cinzentona e sórdida destes objetos, ou o branco já conspurcado que os envolve, não é bela e, no entanto, não me dói. Não me custa nada, pois que são símbolo da civilização moderna e dispersa, que se oculta atrás de mecanismos refulgentes, úteis e eficientes.   O comboio não se decide a chegar, mas eu decido-me a mirar os rostos

Textos da quarentena 10

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Pulvis Queria arrumar as minhas emoções Como quem arruma gavetas. Daquelas  De escritório, cheias de papéis que já ninguém sabe o que são.  Arrumar-me, engavetar-me, mas sem ordem;  Ou com uma ordem íntima, especial.  Pôr-me, desnudado, dissecado, num estendal:  A tirar o mofo, a pôr-me reluzente.  Luz.  Deixar entrar essa preciosa e pô-la a correr-me pela boca,  Como quem bebe o néctar dos Deuses.  Estou cansado, mas "cansado" já nada significa!  Até se pode estar cansado de nada fazer.  Estarei angustiado? Ansioso? Trémulo? Inquieto? Estou; mentira: SOU.  Força conjunta de retalhos, de emoções, de gritos que ecoaram para dentro.  A Luz há de morrer em mim.  Mesmo que entre.  Deixo-a entrar, mas ela sabe.  Sabe que morre no mar das angústias,  nesse mar teatralizado, dramatizado.  Sublimado.  Quis sublimar-me, elevar-me: Sou - somos - pó.  Pó que se pisa e que acaba no túmulo;  Pó que se descarta, que se amansa;  Pó que se aproveita, que se d

Textos da quarentena 9

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O Baú Mental Murnau, de Wassily Kandinsky   As cores. As cores deste quadro fazem-me lembrar dias iluminados, dias solarengos. Dias tipicamente portugueses. Também as cores deste quadro me fazem lembrar as cores portuguesas. O quadro não foi pintado em Portugal, mas a beleza da arte é precisamente esta: a de nos fazer pensar, sentir ou recordar coisas que não estão diretamente relacionadas com o que é representado. Podemos pensar no quadro em si, mas também podemos ir além. Podemos pegar naquilo que a arte nos oferece, podemos usufruir das suas sugestões e ir além daquilo que ela nos apresenta.    Creio que foi o amarelo o culpado. Talvez o azul também. Fizeram-me lembrar casas amarelas que vi em Coimbra ou até noutras cidades portuguesas. Casas para as quais olhei, mas que não vi . Olhei para elas só com os olhos, sem nunca pensar naquilo que significavam, naquilo que significam, naquilo que sugerem . Talvez toda a mistura de cores me tenha feito pensar no meu país. T

Textos da quarentena 8

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Jogo de sombras   Tudo é sombra. Apenas vejo os contornos de alguns objetos. Uma cadeira, uma cómoda, uma pasta com papéis, uma porta, cortinas a esvoaçar conduzidas pela mão do vento…   Mais um dia de Verão que chega ao fim. Mais um dia de Verão do qual não sobra mais nada a não ser a sombra que fica e as parcas luzes que se vão. No meio destes corredores abafados, sem luz alguma a não ser aquela que o céu ainda tem forças para enviar, perco-me em suores que não sei. Observo janelas nos quartos onde poderia entrar, as cómodas onde poderia ter assentado as minhas coisas, sinto-me como que numa flutuação.   Alguém acendeu uma luz. Vou apagá-la. Neste jogo de luz e sombras, quero tornar-me um espetro, sentir os tons da luz como se fosse Monet a pintar os seus nenúfares de sedução. Capturar o efémero porque só ele nos interessa. Só ele nos é e só ele dá sentido ao que é eterno, constante, comum, basilar…   A luz está apagada. Bebo da sombra como se não pudesse beber mais nada

Textos da quarentena 7

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Os Modismos Linguísticos   Não é à toa que se diz que uma língua é viva ou que uma língua é morta. Uma língua viva, por definição, é falada por vários indivíduos - uma parte deles nativos, mas não só - e vive efetivamente. Vive, na medida em que precisa de se adaptar aos tempos, às necessidades e às ideias das diferentes épocas para ser um verdadeiro instrumento de comunicação. Uma língua viva é, portanto, uma língua que está em contacto com outras e é ainda uma língua que tem os seus gostos, as suas manias e as suas particularidades, um bocadinho como cada um de nós.    Como afirmei anteriormente, uma língua viva está em contacto com as outras. Vamos, então, passar à língua que quero pôr aqui em destaque hoje: o Português. O Português está em contacto com outras línguas há muito tempo. Temos fronteiras com Espanha, portanto, convivemos com os dialetos do outro lado da península desde há muito tempo, mas a nossa língua também esteve em contacto com outras um pouco mais distante

Textos da quarentena 6

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Mulheres no jardim Femmes au jardin, de Claude Monet Mulheres no jardim, de Claude Monet   Não estou no jardim. Não naquele que tu vês. Estava ali à mesma hora, mas estava escondido. Decidiram, por isso, pôr-me de parte. Esquecer-me. Não me sinto triste; afinal, é essa a estética do Impressionismo... O essencial é captar os momentos em toda a sua beleza, em toda a sua magia e em toda a sua luz. Pouco importa se eu estou ou não na composição, visto que não fiz parte da impressão que se queria veicular.    No entanto, lembro-me bem desse dia. A Primavera acabara de se instalar. O sol começava a aparecer mais vezes e os dias tornavam-se tépidos e limpos. As flores apareciam, como se pode ver naquela planta por trás da árvore majestosa. O branco dos vestidos confundia-se com o branco das flores e sobressaía ainda mais devido à luz solar. Tudo parecia leve. Só eu é que não me sentia assim. Eu não me sentia mais leve. Talvez me sentisse ligeiramente menos perturbado do que n

Textos da quarentena 5

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Inefabilidade distópica   Estávamos numa das ruas de Rouen. Penso que seria a Rue Saint-Romain, que nos leva desde a magnífica catedral até à igreja Saint-Maclou. Estávamos ali, envolvidos pelas gárgulas da catedral e pelo aspeto simultaneamente sombrio e belo que emana dos monumentos góticos. O céu estava a pôr-se e as cores de que se revestia fizeram-me lembrar o meu terraço, a mais de 1500 km de distância. Não eram as mesmas cores. Não era a mesma luz. Ali, havia uma luz setentrional, menos branca, em que os tons escuros sobressaíam mais, ainda que os tons claros não tivessem desaparecido totalmente. Estávamos noutra latitude, estávamos noutro universo luminoso, o que não me impediu de pensar nos vários pores do sol que havia contemplado do terraço da minha casa.   Creio que as reminiscências são assim: vêm quando menos se espera, por coisas mínimas. Lembramo-nos de gestos, de sensações, de pessoas, de palavras, de ideias e de momentos devido a pequeníssimos acontecimen

Textos da quarentena 4

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Vivemos por contrastes   Talvez todos os computadores e relógios desta casa marquem a mesma hora. São 23:18 de uma noite de março, mais uma que se perderá nos anais do tempo. Mais uma noite em que os corpos cansados suspiram pelo abraço dos lençóis e pelo doce embalo do sono. Suspiraria eu também se soubesse que poderia dormir descansado e acordar fresco na manhã seguinte, prestes a colher a beleza do dia. Como tenho receio de que a noite não me embale inteiramente nos seus braços, dedico-me à escrita, pois sei que saberei apreciar o fruto de amanhã, venha ele revestido de inúmeras horas de sono ou não.   Escrever é um bálsamo que funciona como um vidro. É usando palavras, procurando sentidos e arrancando verdades do coração que o nosso edifício interior faz uma ponte com o desconcertante mundo exterior. Vejo a rua por dentro e por fora em simultâneo. As sombras do interior não se projetam apenas em mim: elas saem do que eu sou para deixarem uma marca nesse exterior. Pudesse eu

Textos da quarentena 3

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Personalidade social proustiana   Comecei ontem a ler Marcel Proust. Já há muito tempo que o desejava fazer, mas a falta de tempo ou o medo de entrar na obra de um escritor tão reputado e muitas vezes considerado difícil impediu-me de o fazer mais cedo. Proust tem de se ler devagar. As suas frases são tão magníficas quanto exigentes. Até agora, ainda assim, a fruição estética tem prevalecido e estou apenas no segundo dia de leitura. Por esse motivo, partilho aqui uma citação que me agradou particularmente e sobre a qual tecerei uma reflexão. Nada temam: a citação está em francês, mas vou traduzi-la para a compreensão de todos.    " Mais même au point de vue des plus insignifiantes choses de la vie, nous ne sommes pas un tout matériellement constitué, identique pour tout le monde et dont chacun n'a qu'à aller prendre connaissance comme d'un cahier des charges ou d'un testament; notre personnalité sociale est une création de la pensée des autres. " - D