Textos da quarentena 5


Inefabilidade distópica


  Estávamos numa das ruas de Rouen. Penso que seria a Rue Saint-Romain, que nos leva desde a magnífica catedral até à igreja Saint-Maclou. Estávamos ali, envolvidos pelas gárgulas da catedral e pelo aspeto simultaneamente sombrio e belo que emana dos monumentos góticos. O céu estava a pôr-se e as cores de que se revestia fizeram-me lembrar o meu terraço, a mais de 1500 km de distância. Não eram as mesmas cores. Não era a mesma luz. Ali, havia uma luz setentrional, menos branca, em que os tons escuros sobressaíam mais, ainda que os tons claros não tivessem desaparecido totalmente. Estávamos noutra latitude, estávamos noutro universo luminoso, o que não me impediu de pensar nos vários pores do sol que havia contemplado do terraço da minha casa.
  Creio que as reminiscências são assim: vêm quando menos se espera, por coisas mínimas. Lembramo-nos de gestos, de sensações, de pessoas, de palavras, de ideias e de momentos devido a pequeníssimos acontecimentos quotidianos. Não são os grandes momentos ou as grandes tiradas filosóficas que nos fazem pensar nos outros – assim não acontece na maior parte dos casos. São as palavras escondidas nas extensas frases de um livro que nos fazem pensar em sensações antigas. Os pequenos objetos fazem-nos, por vezes, pensar nos nossos amigos ou na nossa família, porque aquele objeto tem o poder de desencadear memórias afetivas. É o pôr do sol vibrante de cores que nos conduz até casa, quando achávamos que já não veríamos tão cedo esses pores do sol. Quando quase nos havíamos esquecido que gostávamos de os contemplar.
  Não sei o que fazíamos naquela rua. Estávamos a ir para casa? Penso que sim. Seguíamos pelas ruas normandas depois de termos passado a tarde no café. Os temas não foram os mais agradáveis: a epidemia do coronavírus já nos martelava a cabeça. Não sabíamos o que íamos fazer – talvez já soubesses mais do que eu porque a situação em Itália estava pior do que em Portugal e tu não querias ficar ali. Mal eu sabia que, uma semana depois, estaria a tomar a mesma decisão. Estaria a tomar a decisão relâmpago de voltar para Portugal, para a minha pátria.
  Tivemos uma tarde inesquecível e ainda fomos jantar juntos. Pelo meio, pratiquei o meu italiano. Deu-me vontade de praticar o que já sabia; talvez fosse uma forma inconsciente de te dizer adeus, de aproveitar o pouco que faltava antes que toda a nossa experiência em França mudasse radicalmente. Senti-me feliz ao falar outro idioma, um idioma que começara a aprender há pouco tempo. Senti-me feliz pelo crepúsculo, pela companhia, pelas conversas literárias e existenciais. Estava feliz, ainda que houvesse uma réstia de mágoa no fundo do meu coração…
  Enquanto tive companhia, a felicidade prevaleceu. No entanto, à medida que caminhava para casa e que me embrenhava na escura cidade, senti-me como num filme. Mentira. Sentia-me dentro de um livro distópico. A cada hora havia novas informações sobre uma epidemia desconhecida até então. A cada momento via os números da epidemia aumentar. No entanto, a minha vida continuava, em aparência, normal. Entre aulas, lazeres e afazeres, ia consumindo o meu tempo, mesmo que tivesse sempre, no fundo dos meus pensamentos, aquela estranha preocupação originada por um vírus desconhecido.
  Que estranha sensação tive naquela noite… Creio que percebi finalmente o absurdo de Camus. Se não o percebi cabalmente, para lá me dirijo. A situação era realmente absurda, sem sentido. Parecia que tudo se ia desmoronando, mas ainda não conseguia ver a destruição completa. Creio que ainda não consegui, mas tive um vislumbre mais tarde.
  Não sei o que me levou a escrever este texto. Faltam-me palavras para descrever aquela sensação. Sentia-me realmente no meio de um livro distópico, mas sem me sentir tocado por todas as suas palavras. Estava ali no meio, mas não era atingido pelo que se contava. Não estava fora do livro, disso tenho a certeza, mas também não estava dentro da tinta, da medula óssea dessa obra distópica. Estava lá dentro, fisicamente lá, mas sem que a tinta me salpicasse a pele.
  A sensação foi estranha, talvez inefável. Sim, inefável é a palavra certa. Caso contrário, encontraria palavras ou expressões melhores para a traduzir. No entanto, a caminhada não durou para sempre. Regressei a casa, disse boa noite aos meus senhorios, trocámos duas palavras banais. A realidade tinha dado um passo em frente e, ainda assim, quando me fechei no meu quarto, não me sentia real. Não sentia a sensação como real. Hoje também não a sinto. Talvez devesse reler este texto um dia mais tarde, para ver se ele fará mais sentido daqui uns tempos. Sei que não fará.



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