Textos da quarentena 11

Tributo a Cesário Verde e a Álvaro de Campos

   Acordo na doçura da manhã que me abraça e sinto-me em paz. Talvez seja uma paz momentânea. É realmente uma paz momentânea, pois dura apenas uns minutos enquanto a inconsciência consciente toma conta de mim.
  De repente, desperto-me. Desperto-me e estou ao pé da estação de comboios, de onde contemplo o céu esbranquiçado, amarelado e frio que, de certa forma, me encanta. Olho para as infraestruturas que fazem parte da estação: contemplo os pilares, as linhas do caminho de ferro, os bancos, os televisores, os carris e os comboios que partem continuamente da estação, enquanto eu fico à espera.
   A cor cinzentona e sórdida destes objetos, ou o branco já conspurcado que os envolve, não é bela e, no entanto, não me dói. Não me custa nada, pois que são símbolo da civilização moderna e dispersa, que se oculta atrás de mecanismos refulgentes, úteis e eficientes.
  O comboio não se decide a chegar, mas eu decido-me a mirar os rostos que estão ao meu redor naquela fria e cinzenta estação que o sol tenta, com a sua amabilidade, aquecer. Uma bela rapariga está perto de mim, encostada a um pilar a fitar o ecrã do seu telemóvel, com uma mala preta aos seus pés. A sua pele, de um tom bege, está maravilhosamente emoldurada por uma fina camada de maquilhagem, que realça o castanho esverdeado dos seus olhos e os seus finos lábios beijados pela Juventude. As suas calças negras são justas e brilham intensamente, fazendo um belo par com as suas botas, também elas negras,reluzentes. Leva uma blusa de algodão, tapada por um casaco de pele que nos transporta imediatamente para o mundo das estrelas rock e lhe dá uma aparência de rapariga determinada. No meio desta indumentária tão escura, destaca-se o seu grande cachecol repleto de tons azuis, vermelhos e violeta que lhe cobre o pescoço delicado. Ao meu lado, está um homem pequeno e de ar sórdido, com escassos cabelos louros. O frio reveste-lhe as faces e acentua a palidez suja da sua cara cheia de rugas, que nada mais são do que as marcas da passagem inexorável do tempo. Leva consigo uma mala de atleta, que lhe cai do ombro, e está vestido com umas calças de ganga bastante velhas e coçadas, uns ténis escuros já bastante gastos e uma camisola polar esverdeada. O casaco que o agasalha é um casaco de guerra, já bastante usado e, talvez por essa razão, dá ar de ser confortável. Está uma senhora sentada no banco, com um belo sobretudo azul escuro, mas Ó! Chegou finalmente o comboio! Adeus descrição de quem ao meu lado estava, agora temos realmente de nos separar e de nos instalar dentro da máquina da utilidade economicista!
  Entro, então, no comboio e esforço-me para ver a paisagem circundante. De um lado, vejo edifícios fabris, de cor alaranjada, cinzenta ou branca. Nesse mesmo lado, observo torres envidraçadas, com reflexos de luz e com laivos de eficiência e produtividade. De um talvez outro lado, perco-me a olhar para as casas velhas, sórdidas, sem cor, onde a roupa está estendida em finas cordas. Vejo ainda outros prédios, esses mais respeitáveis e pertencentes, porventura, à classe média, que se recolhe a casa ao fim de intermináveis jornadas.
  E, sentado agora no comboio de janelas amplas e de grande altura, absorvo estes muros repletos de grafitis, estas casas cheias de tinta, estes locais que são banhados por um céu de Inverno onde o sol brilha timidamente, refletindo-se no Tejo.
  As nuvens no ar são cinzentas num lado e de um branco divino do outro. Os raios solares inundam o céu e tornam-no branco dourado. O céu é refulgente...
  Como são belos estes momentos! Como gosto das diferenças mortais da cidade e como elas me (nos) pesam... Toda a beleza e sordidez fazem parte desta Lisboa que vejo do comboio. Daqui a pouco, saio...
  Saí e entrei no ruído interminável da grande capital. Percorro as ruas e observo os grandes prédios, a movimentação incessante dos automóveis, os cafés que se abrem ao bulício matinal e as pessoas em grandes correrias pela cidade. Serei eu o único a caminhar sem pressa?
  Como me assustam os automóveis! Aquela rapidez contínua, aquele stress constante de ter de chegar a horas ao trabalho! E o som dos pneus a serem arrastados contra o alcatrão deixa-me perturbado, como quem fica inquieto ao ver a sua vida arrastar-se diante de si sem grandes alegrias... Mas, ao mesmo tempo, a azáfama inquietante da cidade atrai-me, seduz-me. Sinto-a nas minhas veias como se ela nunca parasse, gosto dela como quem gosta de uma pessoa apressada... Sou Lisboa nos meus pensamentos!
   É verdade: onde estão os meus pensamentos? Parece-me que fugiram no meio da confusão... Pena terem voltado...!


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Filmes

Problemas de pessoas altas

E agora?