Os dias sucedem-se e as horas passam. Estou em casa, mas não sei bem se sei onde estou. Estou aqui e é como se não quisesse estar depois de tantas vezes ter desejado voltar para cá...  Não sei se sou o nevoeiro das manhãs que vai pairando por onde lhe apetece... Não me parece, mas gosto de pensar nesta transfiguração. 
  Saio finalmente destas quatro paredes que me sufocam. Saio e digo a mim mesma que é altura de me esquecer. É altura de sair daqui, mas a saída vai demorar pouco tempo. Mais uma saída fugaz. Apenas uma saída que nada me diz, em que nada sou a não ser eu própria, em que continuo a recordar o peso das minhas convicções sobre mim mesma. Gosto de quem sou - como se fosse possível saber quem é que somos -, mas odeio a forma como tenho de ser. Como me obrigam a ser. Sou massacrada e oprimida por uma sociedade que não me compreende. Saio de casa, vou a festas, maquilho-me, visto-me e todos pensam que tenho liberdade. Todos se esquecem que uma mulher não tem liberdade... Aliás, todos se esquecem que ninguém tem, na realidade, liberdade. Todos amarrados a um mundo que nos impõe uma conduta racional e, no entanto, estúpida. 
  O meu passeio inicia-se. Percorro a estrada, onde poucas viaturas passam, e contemplo tudo o que me rodeia. Vejo as árvores, com o seu porte majestoso, e observo atentamente as cores das suas folhas. Os castanhos e os laranjas são as cores mais belas nestas estações. Preenchem-me por completo e fazem-me sorrir; fazem-me sorrir como se houvesse motivo para sorrir no meio deste caos que nos envolve a todos... 
  A determinada altura, chego ao sítio aonde queria chegar. Estou perto do rio. Estou numa zona onde nenhuma mão humana toca. Num local que ninguém mudou. Ninguém tornou este rio uma praia fluvial para onde se dirigem todos os turistas e pessoas locais. Ninguém vem para aqui tirar fotos a dizer que está, que fez, que a sua vida é linda e melhor do que as outras. Vêm cá poucos e quem cá vem só quer estar em harmonia com a Natureza. 
  Olho o rio, vejo as árvores - algumas estão despidas, enquanto que outras revestem-se com as cores do Outono... Mesmo as árvores mais despidas são lindas. Tornam este lugar mágico. Único. O nu dessas árvores contrasta com o fluir do rio... Aquele fluir azul, límpido e cristalino distrai todos aqueles que contemplam o rio... É esta a verdade, não é? Todos nós mostramos uma face bela e sorrimos, mas ninguém mostra as areias que tem no fundo... Ninguém mostra os montões de sentimentos, de tristezas, de euforias, de medos, de alegrias e de gostos que estão cá dentro. Achamos que ninguém quer saber e o mais triste de tudo é que ninguém quer, realmente, saber. 
  Estou ao pé da margem do rio, mas decido que é hora de partir. Só passo aqui 10 ou 15 minutos, mas talvez sejam os mais importantes de toda a minha vida. Talvez os momentos duradouros nunca sejam nada neste mundo... 
  Vou-me afastando do rio e vou olhando para trás. De súbito, vejo alguém junto à margem. No exato sítio onde eu me encontrava. Será uma mulher ou um homem? A figura que contemplo está vestida de negro e, no entanto, o seu rosto é branco. Não é um branco assustador, mas um branco belo, de uma pureza intacta. Olho para a frente e decido que o melhor é seguir viagem, mas a tentação fala mais alto e olho novamente para trás... A figura não está lá. Desço um pouco e vou até à margem, tento voltar ao exato sítio onde estava e procuro por aquela pessoa. Não vejo nada, a minha vista não alcança nada. Será que estou a ter visões? O melhor é voltar para trás, devia fazer o percurso inverso e enclausurar-me outra vez em casa. 
  Chego a casa e sinto-me bem. Passear só faz bem. Andar a pé é das melhores coisas deste mundo! Sou outra desde que cheguei a casa. Olho para o meu quarto e observo tudo o que aí tenho. As fotos, os cartazes, os livros, os papéis, os sacos e tento relembrar qual é o significado daqueles objetos... Eu dei-lhes um significado, mas será que esse significado chega? 
  Subitamente, a minha mãe entra no quarto. 
  - Onde estiveste? - pergunta-me ela. 
  - Decidi ir dar uma caminhada.
  - Fizeste bem, mas olha estás com um ar estranho... Pareces assustada
  - Mas eu sinto-me bem, mãe... Até estou mais leve depois de ter ido passear.
  - Olha que não parece! Bem, vou ter de ir buscar umas coisas a casa do teu tio. Volto daqui a nada. 
  - Até logo, então! 
  Fiquei intrigada e achei por bem olhar-me ao espelho, mas vi uma cara absolutamente normal. Aliás, até acho que estava com um ar mais leve, menos cansado. A minha pele parecia mais luminosa depois de ter estado no exterior... A minha mãe tem esta estranha mania de ver sinais em mim que não existem. Não a percebo. 
  Pego no meu computador portátil e entro nas redes sociais. Esqueço-me por um instante da pessoa que sou e entro numa pessoa virtual... Uma pessoa atrás da qual me escondo. Todos fazemos isso, não é assim? Deixamo-nos num canto para entrarmos na Internet... Como se a Internet nos deixasse ser livres, como se ela nos deixasse ser quem nós somos. Na verdade, ela faz o contrário. Ela faz com que nos esqueçamos de quem somos na realidade, no dia a dia, cara a cara com os outros. Achamos que somos como nos apresentamos nas redes sociais e misturamos as duas realidades. Misturamo-nos a nós mesmos, porque é essa a nossa única escapatória. É a única forma de estarmos felizes, ainda que momentaneamente. Sei perfeitamente que sou outra nas redes sociais. Porém, não me afasto delas. Continuo lá. Vou lá todos os dias como se houvesse assim tantas coisas boas na Internet... Sou estúpida neste aspeto, mas somos todos, não é verdade? E todos vamos para as redes sociais à espera de encontrarmos uma réstia de felicidade e de paz. Esquecemo-nos de que ela não está aí, mas o facilitismo reina e nós só queremos o que é fácil.
  A isto se chama "duplo pensar". E o que é o "duplo pensar"? - perguntam aqueles que não leram ainda George Orwell. "Duplo pensar" implica sustentar duas opiniões contraditórias em simultâneo, que é o que nós fazemos no nosso dia. É isso que eu faço todos os dias. Acredito que vou ser livre e que vou estar em paz nas redes sociais, mas sei perfeitamente que não estou tranquila e que não sou livre. Acredito que as roupas e a maquilhagem não me vão trazer felicidade, mas arranjo-me minuciosamente para me sentir bem comigo mesma. No entanto, chego a casa e não me sinto melhor. Estou como sempre estive. Sei bem que a felicidade não vem de cosméticos nem de roupas bonitas, mas acredito numa mentira, mesmo sabendo que é mentira. Todos nós funcionamos assim, não é? Acreditamos em duas teses contraditórias, albergamos dois pensamentos totalmente distintos... E a vida vai prosseguindo assim, não é verdade? O mundo vai girando, nós vamos envelhecendo, as folhas vão caindo, os dias vão-se sucedendo e aqui estamos nós na nossa vidinha. Aqui vamos vivendo a acreditar em paradoxos e o pior de tudo é que sabemos que nos iludimos a nós mesmos. O pior de tudo é que nos fragmentamos e nos dilaceramos profundamente de modo a parecer felizes e confiantes perante os outros.
  Chegamos a casa, partimos de férias, damos uma caminhada e sabemos que somos estúpidos. Sabemos que aqueles momentos de paz, de reencontro, de equilíbrio são os melhores momentos de toda a nossa vida. Sabemos que só eles é que nos fazem perceber quão contraditórios somos ou melhor eles fazem-nos ver que não devíamos ser contraditórios. Porém, continuamos a ser paradoxais. Porquê? Pergunto-me realmente porquê! Porque é que eu acho que a maquilhagem me vai fazer sentir melhor? Porque é que eu me imagino a calçar umas novas botas? Sei perfeitamente que tudo isso é acessório e supérfluo, mas aqui estou eu. Aqui estou eu a acreditar e a enganar-me. Sim, sobretudo a enganar-me! Engano-me continuamente e sei que me engano... Há pouco, dizia que todos sabemos que nós enganamos a nós mesmos. Em parte, é verdade; mas há aqui um senão... É verdade na medida em que temos consciência de que há algo de errado e quase aberrante nas nossas crenças e nos nossos estúpidos valores. Porém, nem todos se apercebem claramente da contradição em que se encontram. Têm uma vaga ideia, uma vaga perceção - é isso... Não aprofundam as suas ideias, porque não querem. Desinformam-se deliberadamente. Deixam-se desinformar. Não pensam nem nos simples atos que fazem no dia a dia. Não pensam porque é que isto aconteceu, porque é que ela pessoa fez isto, porque é que eu lhe respondi assim ou assado... Pensam em tudo, menos nas coisas mais pequenas, que, por vezes, são as mais reveladoras! Não se examinam de cima abaixo.
  O problema, na minha opinião, é este: nós preferimos acreditar na pessoa que pensamos que somos do que na pessoa que realmente somos. "Eu penso que sou confiante", logo, eu sou confiante. Errado: eu penso que sou confiante e isso pode, ou não, ter um reflexo direto na pessoa que eu verdadeiramente sou. Nesta pessoa feita de ossos, de carne, de sangue e, sobretudo, de consciência, de desejos, de vivências. Crio-me e moldo-me a mim, mas isso não significa que eu entendo cabalmente o fenómeno que sou, que perceba o meu ego.
  Sou eu que aqui estou e, no entanto, nem sempre é fácil percebermos quem somos. Precisamos de caminhar, de ouvir os outros e de nos ouvirmos para tentarmos esboçar uma imagem daquilo que somos realmente. Só assim conseguimos perceber, em parte, o que é que somos e como é que somos. Nunca me conhecerei completamente, mas posso esforçar-me por conhecer uma boa parte de mim. Posso ler-me e ler o que foi dito e escrito para que consiga tentar pintar um "eu".
  Perco-me nestes pensamentos e não sei porquê... Será que a minha mãe previu isto? Será que ela achou que eu estava com mau aspeto porque sabia, no íntimo de quem era, que eu iria começar a discorrer sobre estes assuntos? Não sei, mas isto talvez nunca saiba. Posso, ao menos, tentar descobrir, nem que seja só para apaziguar a minha mente...
   A minha mãe regressou a casa. Olho-a atentamente e esboço um sorriso dentro de mim ao vê-la. Alta, de cabelo pintado, esbelta, com olhos lindíssimos e umas rugas que mostram que é uma lutadora. Mostram as batalhas por que já passou. Sempre acreditei que ela não é uma batalha em si mesma. Ela nasceu para as batalhas do mundo, mesmo que o negue. Diz que está cansada e que não tem paciência, mas ela nasceu para batalhar neste mundo. Ela é uma pessoa que se compreende a si mesma, apenas gostava que os outros também se compreendessem a si mesmos. No íntimo dela, ela gostaria que os outros soubessem pensar-se como, porventura, ela se pensa sem se aperceber.
  - Mãe, na sexta, vou ao café com a Joana e com o Marco. Precisamos de nos divertir um bocadinho depois de tantos testes!
  - Acho muito bem, filha. Desde que se divirtam, eu fico descansada.
  - Mãe, já agora, o que é que se passa com o pai? Parece que já nunca está em casa e ando sempre resmungão...
  - Não sei, filha... Já sabes como é que ele é... E depois aquele trabalho dá-lhe cabo da cabeça.
  - Pois, não sei. Só sei que tenho achado que ele está estranho ou, pelo menos, está mais estranho do que o normal.
  - Mariana, vais ver que não é nada. Temos de dar tempo ao tempo...
  A minha mãe tem razão. Temos mesmo de dar tempo ao tempo. Precisamos de respirar fundo e de perceber o que é que se passa ao nosso redor. Precisamos de o fazer a toda a hora! Quantas vezes não sentimos a nossa cabeça cheia de palavras feias, de coisas que fizemos, de falhas nossas, de cenários que, provavelmente, nunca acontecerão, e nos esquecemos de dar tempo ao tempo? Precisamos de dar tempo a quem somos. Precisamos de perceber que tudo se vai resolvendo com auxílio do tempo. No entanto, o tempo não basta... Ele é importante, mas ele não basta. Nós também precisamos de nos compreender.
  Contudo, raramente tentamos fazê-lo. Raramente tentamos unir os pontos todos, estabelecer pontes entre o passado, o presente e o futuro. Raramente falamos connosco. Quantas vezes deixamos os pensamentos a saltitar e a marinar nas nossas cabeças e nos esquecemos de dizer, em voz alta, "basta"? Quantas vezes somos os nossos próprios cárceres? Aprisionámo-nos e deixamo-nos dentro de prisões que são tudo menos normais! Ansiamos tanto pelas coisas, queremos tanto que tudo fique bem que nunca paramos para berrar em voz alta com nós mesmos. 

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