Textos da quarentena 14

Amanhã é um novo dia

  A minha quarentena chegou ao fim. Chegou ao fim de uma maneira estranha, uma vez que deixei de estar trancado no meu quarto para poder apenas deslocar-me para as outras divisões da casa, nas quais passava anteriormente menos tempo – ou quase nenhum, para ser sincero. A chuva cai lá fora e sinto-me vagamente nervoso, triste, esquisito. Entediado? Não creio. Talvez perdido nos meandros frios da minha mente.
  Passei dias a fio quase sempre dentro do meu quarto. Não me posso queixar. Tenho um quintal, por isso, pude apanhar ar algumas vezes. Estudei Italiano. Voltei a pegar nos meus livros de Latim e descobri que tinha saudades do desafio mental que é estudar a língua em que escreveu Séneca. Li Proust. Fui à Internet. Entretive-me como pude e, até certo ponto, correu bem. Gostei da solidão, gostei da companhia dos livros. Talvez precisasse da solidão depois de dias de ansiedade infindável num país estrangeiro. Talvez precisasse de me fechar dentro do meu quarto para poder não enfrentar o mundo. Talvez precisasse de o fazer para não sucumbir totalmente às emoções que ainda estão escondidas na minha alma. Apenas estes últimos dois dias foram tristes, complicados, cheios de momentos de ansiedade e paranóia. Cansaço mental? Isolamento social a mostrar o seu lado negro? Mau humor devido à mudança de tempo? Não sei qual é a resposta.

Edward Hopper | American artist | Britannica
Nighthawks, Edward Hopper
  É nestes momentos que nos apercebemos que o ser humano é um ser gregário. Precisamos dos outros para viver. Precisamos dos nossos semelhantes como seres sociais que somos. Se vivesse sozinho, creio que seria ainda mais complicado gerir toda esta situação. Fico feliz por ter regressado a casa depois de momentos de transtorno, depois de ter sentido cada ponteiro do relógio avançar, depois de ter sentido que o cerco estava a apertar. Pensava que, quando escrevesse este texto, escreveria algo belo, mágico, a mostrar as emoções que me povoaram durante esta quarentena. É certo que passei dias muito bons e os aproveitei ao máximo, mas hoje não consegui. E ontem também não. E não sei quando conseguirei, embora pense que amanhã será um novo dia, que me trará novos momentos e novas esperanças.
  Vivemos dentro de uma distopia e isso é aterrorizador. É difícil viver esta situação. É complicado para todos. Creio que os dias felizes voltarão e, em breve, sentir-me-ei diferente, talvez mais apto para me dedicar à leitura e ao estudo. Sei que vou voltar a ver esses dias – penso, aliás, que amanhã já estarei diferente. Digo amanhã porque escrever é uma forma de purgar, de eliminar as toxinas que me ficaram eliminadas na alma. Ao escrever este texto, uma parte de mim vai acabar por desaparecer – essa parte magoada, triste e nervosa que hoje emergiu. A escrita é um meio de sobrevivência, é uma maneira de eliminarmos tudo aquilo que vai ficando acumulado no fundo do nosso ser. Ao escrever este texto, sem objetivo nenhum, sem beleza nenhuma, acabo por me libertar do que está dentro de mim, mesmo que não me aperceba.
  Haverá novos dias. Haverá novas esperanças. Haverá novos contactos humanos. A situação que vivemos não vai durar para sempre. Podemos sempre aproveitar esta quarentena para nos conhecermos melhor a nós mesmos, para percebermos melhor as nossas emoções e para as aceitarmos. Amanhã é um novo dia.

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