Lugar

  O fim do dia dá entrada na fria Normandia e traz com ele um céu azul pálido, entrecortado por linhas cor-de-rosa que não chegam a transmitir a sua força total aos meros mortais que ainda se arrastam pelas ruas da cidade. O relógio celeste indica-nos que, em breve, o período da luz, da energia e do movimento frenético acabará.
  Vejo, a partir dos vidros do metro, as cores do céu. A paz que se vai instaurando nesta cidade à beira do Sena, rio que se deixa alegremente pintar com as cores celestes, sejam elas frias ou quentes, feias ou belas.
  Gosto de olhar para o céu, mas o metro passa demasiado rápido e a vida útil pesa tanto. A produção e a eficiência são o nosso eterno credo – o credo de um mundo onde já não há valores afetivos, mas sim monetários.
  A minha paragem é a seguinte. Tenho de me preparar; lá fora está frio. Bem agasalhado, munido dos meus fones nos ouvidos para esquecer os ruídos citadinos, aí vou eu seguindo pelas ruas que me conduzem até casa. A beleza do frio é impagável. O charme dos gorros e dos cachecóis. As faces marmóreas das pessoas. É, no entanto, difícil suportar esta beleza. É difícil aventurar-me nas ruas congeladas da cidade, onde as pessoas buscam conforto, comida ou a solução para a existência.
  Enquanto caminho, a música explode-me nos tímpanos e vou olhando para as luzes roxas do bar. O roxo dá-me a sensação de estar num filme, como se houvesse uma câmara que seguisse os meus passos. Que gravasse o meu olhar. Que conseguisse captar aquilo que sinto neste momento em que sou uma mera personagem perdida no labirinto citadino que se vai deslumbrando com as pobres luzes roxas do bar. Como é diferente olhar para este lugar quando faz frio e o sol canta o seu hino de despedida. Este é um bairro como tantos outros e, contudo, é aqui que a sensação de solidão abençoada me reaparece. É aqui que sinto a independência, o gosto da liberdade. Foi aqui que o provei pela primeira vez.
  Sinto-me feliz. Numa terra estrangeira, mas que também é minha. Sou tão humano como qualquer outro indivíduo, pouco importa a nacionalidade, a raça, a religião ou o sexo. Tive sorte, tive educação, aprendi francês. Há quem não possa, infelizmente, dizer o mesmo. Não é só por ser um lugar estrangeiro que eu gosto dele. Gosto do que aprendi e do que senti aqui. Gosto de quem me sou aqui.
  Às vezes, canso-me de ouvir falar francês. É esta a língua pela qual me apaixonei; pela qual ainda estou apaixonado. Não tem, contudo, a beleza do português. Tem a sua beleza – uma beleza repleta de elegância, de rigidez e de classicismo. Falta-lhe, contudo, a cor e a flexibilidade da língua lusitana. Falta-lhe esse calor português ou, se calhar, o que lhe falta é apenas o facto de não ser a língua a que recorro quando o cansaço se apodera de mim e me pinta nas cores que quer, como se eu fosse o céu.
  Não tenho lugar. Tenho línguas. Vou colecionando algumas. Não são muito diferentes da minha, mas não importa. Eu escolhi-as – ou será que foram elas que me escolheram? Talvez não haja resposta. Passei muito tempo à procura de um lugar. Não tenho lugar, mas não tem mal.







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