Choro de Palavras

  Imperscrutável.
  Gostaria que o meu rosto se tornasse imperscrutável. Que fosse sempre imperscrutável, como a brisa noturna que me acaricia os pés ao mesmo tempo que me esvazia os pulmões de melancolia. Gostaria de deixar de ser um aglomerado de raiva e de tristeza contra alguém ou contra alguma coisa cujo nome anseio descobrir. Gostaria de ser uma alma da ataraxia, mas sou um boneco demasiado humano que sente tudo e que tudo deixa alojado na sua alma.
  O dia esmorece e nunca estive tão feliz por isso. O calor enlouquecedor da tarde dissipa-se e dá origem a um crepúsculo tingido de roxo, cinzento, laranja e azul. O calor e a luz lancinantes matam-me de dia e só o reinado do crepúsculo me faz, enfim, suspirar. Sinto uma ligeira acalmia; a vontade de rasgar a caixa torácica e de me esganar num grito apazigua-se. A brisa leva os pensamentos inconstantes que se apoderam de mim e põe fim a mais um dia.
  Um dia como qualquer outro, em que tudo quis fazer, mas não sei se fiz algo sequer. Um dia em que me quis dedicar a tudo - desde a leitura à culinária - e que só me fez sentir as horas a passar num canto lusitano da província. Cheguei ao fim deste dia e talvez a minha grande missão tenha sido esta: escrever.
  Escrever. O ato maldito, que acaba sempre por me atrair. Um apelo qualquer, um chamamento de Apolo ou de um deus desconhecido ostracizado pelo cristianismo moralista e castrador em que fomos educados. Pergunto-me por vezes por que motivo raramente choro. Creio que o meu choro se faz pelas palavras, por esses entes que constituem o meu mais precioso tesouro. Fora eu uma pessoa extremamente sentimental e as lágrimas apareceriam de vez em quando. A minha sensibilidade, bastante apurada até, anda sempre de mão dada com um lado analítico, que funciona como um escalpelo de emoções várias. Por isso, só choro escrevendo. As lágrimas estão aqui e deixo-as a vocês. Tenho muitas palavras-lágrimas para mim.


  Tenho muitas crises deixadas no papel só para eu ler... Estas lágrimas, que se materializaram em sintaxe, são para aqueles que têm piedade de ler um texto de um ser ridículo, sem mais ambição que a de ver a forma das palavras no papel.
  Quero, um dia, ser como Flaubert e desancar numa sociedade hipócrita e falsamente civilizada. Ter um estilo tão refinado que quase ninguém ousa tocar-me. Não sei se acontecerá. Ele quis fazer um livro sobre nada. Fernando Pessoa dizia-se nada. Alinho-me com estes nadas numa escrita que existe para me chorar. Quando morrer, quero que digam que as minhas lágrimas eram páginas de texto. Escusam de escrever na minha lápide aquelas coisas enfadonhas que se escrevem para qualquer um. Ponham apenas que chorei verbalmente, através de uma língua que também oiço chorar, ainda que as suas cores sejam bem vivas. Oxalá as minhas cores também ainda não tenham chegado ao seu crepúsculo... 


"Those sunny days of merriment
When heart and soul were free, 
And when I dwelt with kindred hearts
That loved and cared for me. 

I had not mid heartless crowds 
To spend a thankless life, 
In seeking after others' weal, 
With anxious toil and strife."

("Dias de sol e alegria, 
Livre de alma e coração, 
Quando vivia entre corações amigos 
Que me davam amor e proteção. 

Quando não tinha de passar a vida ingrata
Entre multidões sem piedade, 
Em busca da felicidade dos outros 
Com porfiado labor e ansiedade.")

Retirado do poema The Bluebell, de Anne Brontë (obra: Poemas Escolhidos das Irmãs Brontë, edição bilingue, tradução: Ana Maria Chaves)








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