Sufoco urbano

  

  Abafo. Abafo dentro desta casa, destas paredes sem vida, brancas de lividez e de dias aqui passados. A noite chama-me. O vento é frio, a chuva vai fustigando os poucos que se aventuram a sair de casa, mas está na hora de sair. Cometer uma pequena loucura num mundo racional.
  Visto-me, pego no chapéu de chuva e vou-me embora. Pudesse eu ir-me embora de vez… Como daquela vez ao pé do Tejo, onde via os reflexos da luz caírem pelo rio abaixo, e eu imaginava-me a ir, a partir, a levantar voo. E agora estou só, mergulhado na noite citadina, esmagado pelos edifícios que me envolvem, ninguém se atreve a sair de casa, oiço dois ou três carros que passam corajosamente por mim. Nem posso deambular como deve ser, a noite não me quer longe, fico por aqui, tem de ser… Vou pelas ruas da vizinhança, no meio do ar húmido, e ando para cima e para baixo a olhar para edifícios e edifícios entrecortados por uma rara vegetação deixada para trás pela contemporaneidade urbanística. Não tenho destino, nem sequer dou muitos passos, mas chegam para me descontrair, para me tirar um peso de cima. O peso de horas dentro de edifícios, dentro de ideias, dentro de teorias, dentro de julgamentos, de incompreensões e de chatices.
  O ar frio faz-me bem. Gosto de sentir o ar frio na minha pele, deixando como pedra o meu coração, o meu cérebro, as minhas emoções desorganizadas que tento, em vão, pôr em ordem no dia a dia. O ar frio faz-me melhor que o conforto de uma casa, de uma casa desterrada, de um mundo que me seduz e me horroriza. Se pudesse pedir um desejo que se concretizasse, talvez pedisse que a noite me levasse com ela. Para longe. Que me levasse para um destino onde estaria melhor, onde seria mais eu, onde estaria mais pleno, mesmo que infeliz. Para um sítio onde tudo fosse melhor, mais belo, mais aprazível. Um convite à viagem, como naquele poema. Queria que a noite me entregasse um convite à viagem, para uma viagem luxuosa e prazerosa, onde eu fosse tudo e tudo me fosse. Oh, se o génio da lâmpada viesse aí e me ajudasse…!
  Depois dos passos que dei, encontrei um bom sítio para estar. Parado, a observar. Faz falta parar e olhar, não faz? Dias e dias passados em afazeres, mais ou menos agradáveis, vidas recheadas de tecnologias, de dramas, de expectativas, de consumo, de depressão, de felicidade, de consolo sentimental não encontrado, de palavras não ditas, de olhares não compreendidos. Andamos para trás e para a frente, enfiados em automóveis que poluem e dão cabo do nosso planeta sem pensarmos duas vezes em alternativa. Andamos para trás e para a frente à procura de distrações múltiplas. Andamos para trás e para a frente, entre edifícios sujos, feios, degradados, entrecortados por um ou outro mais imponente, mais belo, mais vintage. Andamos nesta roda viva sem pararmos, sem contemplarmos. Hoje contemplo eu. Cinco minutos chegam. Chegam perfeitamente para mim, talvez sirva para nós todos.


  A cidade abre-se a meus pés, vejo as suas veias, os carros que não param, as reverberações arrastadas dos candeeiros das ruas, os centros comerciais, as pontes, as infraestruturas em aço, em betão, um ou outro resquício em ferro. Estou sozinho a ver esta cidade. Estou sozinho e creio que nunca aqui tinha estado. Não desta maneira. Não com este sentimento, com esta vista, com a cidade aberta como um coração a pulsar. Pudéssemos todos parar cinco minutos, sozinhos, numa noite qualquer, só para olhar e sentir o vento frio limpar-nos as tristezas acumuladas, as euforias contidas, os projetos não delineados. Ver o movimento da contemporaneidade, ver onde estamos, os charmes da nossa vida e os seus inconvenientes.
  O que fazia na rua ontem àquela hora? Contemplava. Será esta a resposta que darei amanhã. Hoje não digo nada, não tenho nada para dizer. A minha alma precisava de um banho oitocentista, os livros já não chegam. Há quem goste de pensar que nasceu no momento histórico errado. Também já eu tive esse pensamento, mas não adianta. Nasci quando tinha de ser… Talvez tenha algo a dar a este mundo, nem que seja apenas cinco minutos de contemplação na solidão encantadora da noite. 


« Il faut être absolument moderne. » Arthur Rimbaud


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