Ficções
Chá de Alma
Sol.
Hoje o tédio levantou-se cedo, saiu da cama, viu o sol. “O dia está
belo” – pensou. Belo dia para se passear pelas almas afadigadas, para se
mostrar nas ruas, para se divertir com os burgueses. O tédio veste-se. Um manto
púrpura brilhante, escondendo roupas pretas, evidentemente. Empalidece
propositadamente, busca com mãos venenosas a sua escova, penteia-se de modo
arrojado, louco, frenético.
Aí vai ele, deslizando, desfilando, como se todo o mundo fosse dele,
como se esta vida não lhe pertencesse senão a ele. O tédio desfila e, no seu
manto, pode ler-se “Chamem-me tédio, spleen, ennui, mal-estar ou sadness. Não
interessa o meu nome”. Realmente, não interessa o nome que se lhe dá e, no
entanto, sem esse nome, sem esse epíteto vivo, o tédio não seria mais do que
uma mera forma estranha. O seu nome é a sua identidade.
O desfile ainda não terminou. O sol. Faz-lhe bem o sol, pelo menos assim
pensa. Adora passear-se ao sol, sempre poupa um pouco as suas queridas presas –
os humanos. Todos o conhecem? Oh, não é bem assim! O tédio escolhe as suas
vítimas com rigor, da mesma forma que pede criteriosamente ao tailleur que lhe faça os seus fatos
espampanantes. Mune-se das suas capacidades para conhecer alguns humanos. Adora
aqueles que são ambiciosos. Adora aqueles que têm tudo, mas se deixam arrastar
no marasmo existencial. Adora aqueles
que leem e excitam continuamente as suas ideias, o seu espírito, as suas sensibilidades.
Adora os artistas. Às vezes, escolhe outros humanos. Afinal, o tédio gosta de
ter um espírito (ligeiramente) democrático! “Não gosto de escolher ao acaso,
mas todos merecem os sentimentos que inspiro. Fazem parte da existência - essa caixa
de pandora!”
“Está-se tão bem na rua!”. Quase podia estar ali todo o dia. O sol da
manhã é tão puro, um sol antigo, vindo de tempos ancestrais, presta homenagem a
este canto da Humanidade. Este canto por ti escolhido hoje. A claridade é
magnífica, cheia de subtilidades, limpa. Uma claridade que faz as janelas
sorrirem e os campos pulsarem de energia. Se esta luz batizou tantos outros,
porque não nos há de batizar a nós? O fumo dos cigarros evapora-se no ar, as
fachadas são batidas pela pujança solar. As pessoas vão deslizando aos poucos
para as ruas.
E o caminho continua. O tédio vai passando, vai vendo, até vai acenando.
Há quem não o vislumbre. Outros fingem não o conhecer. Não precisa de pessoas,
o tédio. Gosta de se espalhar pelo dia, de apavorar quando as chuvas fazem a
sua aparição e de ser beijado pelo sol.
Pudéssemos nós vestir-nos como o Tédio. Pudéssemos nós ser assim:
indestrutíveis, imortais, constantes, sós.
“Que sina serem todos gregários! Estes humanos…!” Quiséssemos nós ter a ironia
destrutora, o sarcasmo fortíssimo, o espírito maravilhoso do Tédio. Nós,
mortais, somos tão frágeis, tão inquietos. Devíamos aprender a ser como o
tédio. Devíamos cativar-nos, devíamos ver-nos como diamantes, devíamos dar o
nosso melhor e o nosso pior segundo as circunstâncias. Somos tristes.
Uma casa branca, de um branco lavado pela luz matinal. Agradou-lhe, vai
entrar, mas a sua entrada tem de ser cuidada, tem de ser estudada. Não se entra
assim na alma dos outros sem uma certa preparação. O Tédio conhece aquela casa,
já viu as almas daqueles que a habitam, conhece-os de trás para a frente;
precisa somente de um minuto para trazer a si mesmo todos os conhecimentos que
deles obteve. Está preparado. Arrasta-se mais um minuto ao sol, pensa em como
seria bom ter gostos humanos para entrar nas lojas de moda…
Vai subindo as escadas sem pressa. Até nisso é superior aos Humanos!
Toma o seu tempo, não tem de poupar minutos para morrer. Há um espelho perto da
porta de entrada. Mira-se, vê-se de forma atenta, avalia-se ao pormenor;
parece-lhe que, de repente, está maior, mais nobre, mais distingué. O sol fez-lhe bem, as roupas parecem-lhe mais luzidias,
o espelho em que se mira parece feito de uma prata esbranquiçada, brilhante. Vê
a campainha, não precisa dela.
Entrou de mansinho; ninguém deu por ele. Sentou-se numa secretária bela,
cheia de flores e de livros magníficos. Alguém se sentou à sua frente. Quem
será?
- Bom dia, caríssimo spleen! O
que deseja tomar?
- Oh, não se preocupe comigo!
- Quer um chá?
- Só se for o da sua ornada alma… - disse, rindo-se sarcasticamente.
- Trago-o já.
Diálogo bizarro, pensou o Tédio, e ele que pensava estar habituado a
tudo! O seu hóspede regressou pouco depois, entregou-lhe um molho de folhas cheio
de palavras e mais palavras.
- O chá da minha alma está aí. Espero que seja do seu agrado!
- É a primeira vez que me fazem tamanha surpresa…!
- Aqui em casa, é hóspede de honra. Sou seu servidor.
- Bem vejo. Gosto de si. Qual é o seu nome?
- Oh, um ilustre desconhecido! Lê aqui ou prefere fazê-lo em casa?
- Leio aqui. Vou instalar-me no sofá, se mo permitir.
- A minha casa é a sua casa. Depois diga-me o que achou!
- Com certeza…
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