Petit poème en prose
O Crepúsculo da Alma
A noite vai-se
arrastando e vai desfilando languidamente por cima das nossas cabeças. Qual
mulher parisiense perfumada e ornamentada, a noite vai refrescando o ar
rebentado de calor e faz entrar a brisa neste apartamento onde me abafo até ao
Infinito. O dia de sol, belo e brilhante, causa-me desconforto, pois vivo em
paradoxo. Amo o sol, amo as claridades e, no entanto, elas ferem-me, entram-me
nos olhos com o poder de um tirano e arrancam a minha disposição. Vivo para as
claridades porque fujo delas e as procuro em simultâneo. Tento escapar ao calor
que tolhe, abate, faz ranger os nervos e magoa a alma, mas ninguém escapa às
garras dele. O suor cai pelo corpo abaixo, a energia esmorece, a calçada brilha
de loucura solar.
Tudo isto tem
implicações nesta vida de afazeres da utilidade burguesa contemporânea, em cuja
sociedade nos integramos. Movidos pelo ideal (talvez) nobre da eficácia,
enfiamo-nos em edifícios que se alargam com o calor e que pedem leques a toda
hora. Os edifícios vão pingando gota a gota ao mesmo tempo que nós. Pedimos
limonada fresca e brisa reconfortante, mas o sol não nos dá nada disso… E ainda
a procissão vai no adro! O calor acabou de chegar, o que significa que as suas
coisas ainda não estão arrumadas. Assim que pendurar a roupa no armário, vai
fazer de nós um mero brinquedo que apenas se queixará da temperatura excessiva.
É por isso que, nesta altura do ano, a
chegada da noite é o ponto fulcral do dia. É a noite quem traz a
calma, quem nos faz respirar e quem deixa entrar o ar livre nas casas que mais
não podem com o calor. Fim do dia, sol que se esvanece e se vai embora, deixando
atrás de si tons de roxo, rosa e laranja no céu que do meu terraço vejo.
Rodeado de edifícios disformes e incoerentes uns com os outros, oiço a voz do
Crepúsculo.
É ele quem vai
cantando, qual cantor lírico, a anunciar a chegada a Noite, essa mulher
parisiense belíssima e elevadíssima. Ele canta, fazendo com que as notas
musicais perfeitamente atingidas se enrolem todas num sopro de vento que me
acaricia e me tira a pressão de dentro do corpo. Sai-me um peso da alma, vai-se-me o cansaço do corpo, aparece o espiritual em mim. Danço, corro, salto, oiço o
pulsar do coração da cidade que enfraquece e que pede recolhimento.
Se eu pudesse
sempre sentir isto que tu me trazes! Pudesse eu chamar o teu ar fresco, a tua
liberdade, a tua ataraxia a mim e seria eu feliz. Vem, Crepúsculo, e envolve-me
nos teus braços, chama-me teu filho antes que a Noite se apodere do meu corpo
frágil e inseguro. Leva-me no teu seio para o céu que se tinge das cores do meu
sangue; do nosso sangue. Eleva-me para as nuvens, onde enfim contemple
serenamente este mundo onde os carros buzinam, as pessoas fingem falar-se e o
dinheiro reina! Leva-me à Vida, ao Mar, ao Céu, ao Abismo, mas leva-me nessa
tua brisa que de ti emana e não me ponhas outra vez no sítio onde sempre
estive…
Baudelairiano e
pessoano, quero que me ponham fora deste mundo onde as vozes se cruzam e
ninguém se ouve, onde os sonhos se nascem para tão cedo acabarem. Só respiro
quando o Crepúsculo me acaricia e me embala. As minhas faculdades,
desaparecidas com a tirania do calor, só voltam quando ele me toca, me desnuda,
me torna da cor celeste. Brisa do momento, pudesses tu ficar a viver em mim
eternamente…
Esse Crepúsculo
que me eleva é o mesmo que me faz cair. Caio como o dia, assim que penso na
realidade. E, ébrio do preenchimento espírito-sensual do Crepúsculo, volto a
cambalear para este quarto onde Baudelaire é uma nota de tempos livres,
enquanto a ordem do dia é a coordenação sintática… Triste vida a minha (a
nossa?)… Quem quer ser poeta depara-se com o dia a dia para fazer, com uma
função a desempenhar. Se puser no meu registo civil que trabalho para captar a
brisa do Crepúsculo, aceitar-me-ão? Amanhã, à hora em que ele me aparecer e me
encher de vida, responder-me-ei que sim, que me aceitarão. E se ficasses para
sempre, mon Crépuscule, e fizesses os
outros ver o que eu vejo?
Oh Deus, estou
cansado de não ser etéreo!
**
Le Crépuscule du Soir
"Le jour tombe. Un grand apaisement se fait dans les pauvres esprits fatigués du labeur de la journal; et leurs pensées prennent maintenant les couleurs tendres et indécises du crépuscule.
[...]
Ô nuit ! ô rafraîchissantes ténèbres ! vous êtes pour moi le signal d’une fête intérieure, vous êtes la délivrance d’une angoisse ! Dans la solitude des plaines, dans les labyrinthes pierreux d’une capitale, scintillement des étoiles, explosion des lanternes, vous êtes le feu d’artifice de la déesse Liberté !
Crépuscule, comme vous êtes doux et tendre ! Les lueurs roses qui traînent encore à l’horizon comme l’agonie du jour sous l’oppression victorieuse de sa nuit, les feux des candélabres qui font des taches d’un rouge opaque sur les dernières gloires du couchant, les lourdes draperies qu’une main invisible attire des profondeurs de l’Orient, imitent tous les sentiments compliqués qui luttent dans le cœur de l’homme aux heures solennelles de la vie.
On dirait encore une de ces robes étranges de danseuses, où une gaze transparente et sombre laisse entrevoir les splendeurs amorties d’une jupe éclatante, comme sous le noir présent transperce le délicieux passé ; et les étoiles vacillantes d’or et d’argent, dont elle est semée, représentent ces feux de la fantaisie qui ne s’allument bien que sous le deuil profond de la Nuit."
Crépuscule, comme vous êtes doux et tendre ! Les lueurs roses qui traînent encore à l’horizon comme l’agonie du jour sous l’oppression victorieuse de sa nuit, les feux des candélabres qui font des taches d’un rouge opaque sur les dernières gloires du couchant, les lourdes draperies qu’une main invisible attire des profondeurs de l’Orient, imitent tous les sentiments compliqués qui luttent dans le cœur de l’homme aux heures solennelles de la vie.
On dirait encore une de ces robes étranges de danseuses, où une gaze transparente et sombre laisse entrevoir les splendeurs amorties d’une jupe éclatante, comme sous le noir présent transperce le délicieux passé ; et les étoiles vacillantes d’or et d’argent, dont elle est semée, représentent ces feux de la fantaisie qui ne s’allument bien que sous le deuil profond de la Nuit."
Charles Baudelaire, in Le Spleen de Paris
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