Monet, luzes e ação
O fim de tarde chega, de mansinho, prestes a refrescar a
paisagem queimada pelos raios de sol enraivecidos de Verão. É ele que
transforma o céu numa obra de arte, que contemplo como se visse a pureza do
Universo a voltar a mim. Saio à rua finalmente e tento fixar, na minha difícil
memória, a cor das nuvens que se descola daquele céu azul claro.
Tento fixar a cor
das nuvens porque só elas me trazem um pouco de calma, um pouco de paz aos meus
dias de raiva, de ódio, de pânico, de gritos secos dados no meio da escuridão.
Vejo-me a anoitecer (de que dia falo eu?) e estico o meu corpo ágil em direção
àquelas cores que pairam no céu, como se elas conseguissem preencher este
vazio, esta insatisfação, esta falta de me ser, esta raiva de tudo me
martirizar. Quero dançar ao som do vento e tornar-me laranja ou então um
vermelho cor de sangue, como aquela nuvem perto da torre. Quero sentir aquele
azul a tombar para negro de que se reveste o céu pré-noturno. Quero mergulhar
no tom esbranquiçado que aparece sei lá eu onde, sei lá eu porquê. Sei que
quero entrar na profundidade do amarelo que vem talvez do sol que insiste em
desiludir-me e dizer-me adeus. Quero ser estes rasgões de nuvens que se tornam
roxos e púrpura. Quero que o sol me continue a bater na cara e que se espalhe
pelas folhas das árvores a dourá-las para a câmara dos meus olhos.
O meu corpo
movimenta-se. Estica-se. Dança. Move-se. Entretém-se. O sol põe-se e eu
ponho-me com ele também, a esquecer-me que existo. O cheiro da terra penetra no
meu corpo suado e eu sinto que quero viajar para fora do que existe, porque o
que há não basta nunca. As cores, as nuances, as luzes dizem-me para viver com
elas. Dizem-me que tenho de as sentir, mexendo-me. Dizem-me que posso, enfim,
ser livre, nem que seja por um instante. O meu cérebro esvazia-se e deixa-se
entorpecer pelo cair da noite. O céu cobre-me e os rodopios não param. As mãos
incessantes colhem folhas. As articulações dos dedos finos parecem cordas a ranger
para o meio do ar.
Esqueço, num
momento, a raiva. A dor. O medo. A minha mente. Esqueço a morte dos dias, os
pensamentos macabros, a falta de amor próprio, a minha condenação. Não tenho
nada senão o pôr-do-sol. Não há nada que me alivie, que me tire, que me eleve,
senão os tons do fim do dia. Não há nada que me traga sorte nem amor nem paz.
Nada que me faça esquecer, porque nasci para me lembrar. E as lembranças
sentem-se de uma maneira peculiar. Às vezes, de forma ténue; outras, de uma
maneira tão acutilante, que sentimos uma faca a serrar a cabeça.
Mas tudo passa.
Tudo passa e estes ínfimos minutos passam também. Passam e voltam a deixar-me
no cansaço. Há um cansaço provocado não sei bem porquê e que vem não sei eu bem
de onde. Sei que não é só uma constante física, mas também um não sei quê
psicológico. A minha cabeça estala de dores, grita para dentro enquanto os
sorrisos e os clichés saem para fora. O meu corpo arqueja de raiva e de ansiedade
por dentro. Por fora, tudo está bem. Por dentro, tudo se estilhaçou, partiu,
foi. O vaso dos meus ideais caiu por terra. O cesto das minhas vontades voou
com o vento. As flores da minha animação foram e não regressam. O cálice do
otimismo não foi mais do que um lenitivo temporário.
Tudo o que fui
foi. Tudo o que sou não sei. Há horas em que o sol parece brilhar mais, em que
os ventos parecem encaminhar-se na minha direção, em que tudo parece fazer
sentido. São apenas horas. Nada dura; tudo se evapora. Estou verdadeiramente
cansado. Falta-me algo que me dê o alento de outrora. Será que me contentei com
as metades? Será que fiquei pelo “não é assim tão mau”? Conformei-me com a
imperfeição? Ou terei desistido de tudo?
Dizem que ninguém é quem queria ser. Não se aplica no meu caso. Sou-me até ao fim de tudo, seja da dor massacrante ou do amor entusiasmante, mas nunca pude ser alguém proveniente de outras telas. Não tenho pulsos rijos, mas, dentro de mim, há uma fortaleza de aço. Não me encaixo nas roupas dos outros, mas brilho no que desenhei para mim. Não nasci com as capacidades que vinham no pedido, mas tenho talentos que só eu sinto. Há quem me julgue uma flor, mas Monet nunca pediu pedras pesadas para os seus desenhos…
Dizem que ninguém é quem queria ser. Não se aplica no meu caso. Sou-me até ao fim de tudo, seja da dor massacrante ou do amor entusiasmante, mas nunca pude ser alguém proveniente de outras telas. Não tenho pulsos rijos, mas, dentro de mim, há uma fortaleza de aço. Não me encaixo nas roupas dos outros, mas brilho no que desenhei para mim. Não nasci com as capacidades que vinham no pedido, mas tenho talentos que só eu sinto. Há quem me julgue uma flor, mas Monet nunca pediu pedras pesadas para os seus desenhos…
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