Ab imo pectore
Nuditas
Face branca de
pureza e genuinidade. Lábios carnudos como uma explosão de prazer e raiva.
Cabelo escuro da força da terra, do cheiro da vida. Mãos suaves como uma jarra
de flores. Corpo esguio e magro de planta flexível, cuja seiva flui
continuamente. Sentado numa cadeira, a contemplar o céu de tons arroxeados e
alaranjados a partir do terraço, sento-me e recordo-me como se fosse penetrado
por uma acutilante sensação do passado por resolver.
Como esquecer os
dias de pânico e angústia quando se é criança? Como esquecer o medo dos
colegas, as palavras cruéis que eles gritam ao verem alguém que sabem ser
diferente? Como não sentir uma dor pelos nervos dentro quando as palavras
brutais e ferozes nos atropelavam quando éramos crianças? Como não sentir o
desespero na pele quando te pontapeavam ou te pregavam uma partida? Como
esquecer a chaga que ficou, que permanece, que nunca sarou e nunca há de sarar?
A infância é sempre um período belo porque distante. Ela não é bela. Ela só é
bela para quem tem sorte. Uns nascem fadados para a dor, para a sagração
completa pelo sangue e pelo suor, para os ataques nervosos aos 6 anos e para as
lágrimas da incompreensão e da frustração. Quem foi, afinal, uma criança feliz?
Eu não. Traçaram-me esta vida de dores, de nervos; esta vida de uma
sensibilidade cruel, acutilante e poética.
Desejaria nunca
mais voltar a ser “eu”, a viver aqueles tempos de infância. Os dias em que não
percebia o porquê de tanta indignação por parte de um conjunto de fedelhos para
comigo, os dias em que me sentia apedrejado de olhares e de comentários por
apenas existir. Ajo e sou. Não aceito críticas à minha plenitude. Nunca
aceitei. Nunca aceitarei. Ergui-me e construí-me completamente. Ignorei tudo
quanto vinha na minha direção e aprendi com os sábios conselhos da mãe, cuja
força bruta me entrou na corrente sanguínea. Fui eu até ao fim quando era
criança. Esgotei-me completamente no “eu”-criança porque era para isso que
estava destinado. Incorporei-me até ao fim de mim mesmo e ignorei quem me
apedrejava. Nunca mereci o que me fizeram, mas haverá maneira de pagar aquilo
que as dores me deram?
E os momentos de
revolta, de descoberta e de incompreensão quando me soube adolescente? Como
compreender o meu corpo, os meus desejos, o meu íntimo, as minhas escolhas?
Como me afirmar até ao fim, com a seiva do ser, com a força de viver? Como
chegar à conclusão mágica de quem eu era? Porque eu sou-me realmente e nunca me
soube ser outro. Como me desmascarar perante mim? Como ficar nu perante o
mundo, que me cobria de patadas e de ciladas? Despi-me, enfim, e fui-me até ao
fim mais uma vez. Inspirei o ar coberto de tons róseos e atirei-me para a relva
de onde me cresci. Enfrentei tudo até ao fim, sem derramar uma lágrima, sem um
gemido de dor. Implacável comigo fui, até me ter preenchido por completo, longe
do que os outros dizem ou fazem.
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"Pela arte, onde se tem necessidade de tempo, não seria nada mau viver mais uma vida." Vincent Van Gogh |
E aqueles dias ao
sol, em que o som me preenchia por completo, e eu me sentia prestes a desmaiar
de suor e nervos? Aqueles dias de adaptação difícil, de incompreensão, de sensação
de desconforto? Eu, ali, no meio de tantos outros. A fazer som como nunca o
fizera na vida. A escutar os trombones e os trompetes enquanto as minhas tripas
se revolviam de medo de falhar o compasso ou de não marchar bem. E a minha
vontade de fugir, de gritar, de sair dali e de deixar os meus nervos acalmarem?
E os momentos de incompreensão, de pânico, de falta de vontade, de turbilhões
de pensamentos? Oh, eu nunca os esquecerei! Vivi-os até ao fim de mim. Senti-os
dentro do meu coração como nunca ninguém os havia sentido. Aquele som dos pés
nas calçadas, o calor das mãos que matraqueavam o saxofone e o meu instinto de
me fugir pesam tanto na minha alma e nas minhas mãos tão magras e que já
seguraram um ser tão poderoso que nem sequer se corrompe. Fui-me novamente.
Bebi o vinho da solidão e dos nervos até me ter esquecido de que o bebia.
Habituei-me a bebê-lo como se bebesse sumo de fruta natural.
Toda a minha vida
foi de momentos de desespero, de cansaço, de choro interior que nunca saiu
pelos meus olhos… Toda uma vida perdida em perfecionismos, em zonas de
conforto, em momentos de frustração e de esperança. Uma vida de momentos de
inconstância, de revolta e de vómitos maquilhada numa vida bela e fabulosa. Uma
vida mascarada que se despegou – felizmente – de mim.
Tantos dias de
sorrisos forçados e de ansiedades horrorosas culminaram em quem me sou
verdadeiramente. Utilizei todas as patadas que me deram, todos os comentários
mesquinhos que teceram, todas as vezes que me criticaram e que me disseram que
não podia ser como eles para ser o que sou. Sou-me. Sou-me e quero que o resto
do mundo vá para o caralho que o foda. SOU-ME ATÉ AO FIM, COM TODAS AS CHAGAS,
CONQUISTAS E VERDADES QUE ADQUIRI. Serei eu mesmo até sempre e afirmar-me-ei,
na dor ou na euforia, a todos quantos me aparecerem.
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