"Je est un autre"

No Canto do Olho

  Saio de casa e mergulho na escuridão doce da noite. Eu, amante dos dias repletos de luz e de calor, troco a claridade matinal pela escuridão cerrada e sinto-me dançar na brisa fresca e cortante da noite, enquanto ouço os sons desta terra adormecida. Onde estou eu? Estou em casa... Naquela que é a minha terra natal. Estou na minha verdadeira pátria, aquela a que sempre recorro nos meus momentos de cansaço, de tristeza, de solidão, de desespero. Naquela pátria com a qual sonho quando não tenho sonhos e na pátria que me corrói quando os meus sonhos sabem que não têm lugar ali. Finalmente, encontramo-nos. Eu e tu, minha querida terra. Tu e eu, minha amada noite.
  Oiço os meus passos à medida que vou caminhando. A estrada ainda está ligeiramente molhada, pelo que o ruído das minhas botas não passa despercebido naquele momento. Continuo a caminhar no meio de uma estrada escura, estreita e ladeada por silvas e árvores, tentando, talvez em vão, encontrar uma luz suficientemente forte que ofusque os leves pensamentos que vão emergindo à tona do meu cérebro.



  De repente, tenho de virar à esquerda. Ou será melhor ir para a direita? Não, ir para a direita não vale a pena. Hoje, vou para a esquerda. Entrei no passeio do lado esquerdo e então senti a luz a preencher a escuridão das ruas, mas ela não me preencheu a consciência. Não fez isso de maneira alguma...
  Estou a tentar esquecer que tenho um caos instalado na minha mente quando alguém passa por mim. Não sei quem é. Não quero saber.
  Depois, passa outra pessoa por mim. Quem é? Ok, não interessa...
  Aí vem mais uma... Será que esta cara me é familiar?
  Ali à frente vejo mais duas figuras humanas. A cara delas está totalmente consumida pela sombra. Vale a pena tentar descortinar de quem são aqueles rostos?
  Todas estas pessoas, que eu nem sequer sei quem são, passaram por mim. Passaram por mim e continuaram a sua marcha. Será que elas vão para a direita hoje? Ou decidiram seguir a esquerda? Não sei e talvez não interesse.
  Continuo o meu percurso, mas decido, não sei porquê, olhar ligeiramente para trás e ver as pessoas que ainda há pouco passaram por mim. Pelo canto do olho, vejo-as a seguirem os seus caminhos, sem pensarem em mim. Sem pensarem no que eu penso ou no que eu sou. Elas seguem e eu sigo. Eu sigo para o outro lado. Será que elas não veem o que eu vejo?
  Vejo realmente que aquelas pessoas que me aparecem no canto do olho são as pessoas que eu sou e que eu poderia ter sido. Cruzo-me com elas e sei que só não estou no lugar delas porque me é impossível escolher todos os caminhos ao mesmo tempo. Vejo todas as pessoas que eu não quero ser agora, mas que eu quis ser no passado. Contemplo aqueles que eu ainda quero ser. Observo atentamente aqueles que quererei ser. Mas continuo.
  Continuo e, enfim, parece que sou eu o que seguiu para o outro lado. Talvez tenha achado este percurso mais pitoresco? Não sei... Não sei nada disso, mas sei que o caminho dos outros não é o meu. E só não é meu porque hoje decidi que não era o meu. Amanhã, talvez até já seja o meu, mas, agora, não é nem pode ser.
  Dobro vezes sem conta aquela esquina. Não aquela de que falei há pouco, mas a eterna, a verdadeira esquina e penso sempre "devo ir pela direita ou pela esquerda"? Será que todos refletem antes de escolherem o seu caminho? Talvez o façam... Talvez ninguém o faça. Talvez eu pense que o faço porque me habituei a iludir-me através do pensamento.
  Verdadeiramente penso, repenso, olho e volto a olhar. Conto e reconto na minha cabeça a quantidade de vezes que quis ser aqueles que vejo pelo canto do olho. Recordo-me das vezes em que pensei neste caminho que estou a seguir nesta noite sombria. Houve realmente um momento em que pensei em seguir este caminho? Ou tê-lo-ei feito como ente determinado e limitado? Nasci para este percurso? Não sei se as pedras no meu caminho mo sabem dizer... Oh! Como é difícil perceber...
  Parece que o meu caminho não tem fim, mas não é verdade. Estaquei à frente do restaurante onde devo entrar. Acho que se cruzaram mais pessoas no meu caminho... Porque é que não posso fugir dali, ir ter com aqueles que me são e que eu sou sem saber e viver? Viver como verdadeira energia pura, sem limitações. Agora não dá, vem aí alguém... Já me viram. Entrego-me à negra vida de sempre...
 - Ainda bem que chegaste! Estava a ver que não! Vamos entrar!!



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