Viajando em mim e fora de mim

Estar e não estar



  Entro no autocarro e deixo-me para trás. Deixo tudo o que conheço para trás, nem que seja por alguns minutos. Entro e sento-me. Sento-me e instalo-me. Instalo-me fora de mim, naquela escuridão que me envolve, que me acaricia e que me diz que vou estar sozinho. Eu a sós comigo mesmo. 
  O autocarro começa a andar e eu já sei que deixei tudo para trás. Os barulhos do motor, as luzes na estrada e os edifícios que me acompanham até chegar ao meu destino são tudo o que eu tenho. São tudo o que eu quero ter. Não quero ter nada, possuir nada, ser nada. Quero estar e não estar. É isso mesmo. Eu estou e não estou. Estou ali dentro e, no entanto, não estou em parte alguma. O movimento constante obriga-me a não estar, mesmo que ali esteja. 
  É isso que eu amo numa viagem. É esse estar e não estar, esse encontro de mim comigo mesmo graças ao facto de eu não estar onde estava ou onde costumo estar. A escuridão envolve-me e embala-me como se eu fosse uma criança e, na realidade, eu sou uma criança. Uma criança que apenas quer estar e não estar. Sem raízes podres a prenderem-me. Só quero o bem. Só quero estar e não estar. É isso que mais quero e é por isso que viajar sozinho tem também o seu encanto.
  Sou quem nunca fui. A cada momento mudo e transformo-me. A renovação é permanente, nós é que nem a vemos. É quando viajo que sei que a mudança corre nas minhas veias. É nessa altura que eu estou onde sempre quis estar. 
  A música que oiço enquanto viajo diz-me tanto. Ganha toda uma dimensão épica, pessoal e melancólica. Sinto-me um poeta. Sinto-me tudo o que quero ser e que serei. Sinto que estarei para sempre condenado a querer ser, ser e ser, mas que não quero estar. Prefiro estar e não estar. Prefiro andar, nem que seja para me esquecer de quem sou. 
  Cada palavra cantada é um sino na minha alma. Replicam todas aqui dentro. Replicam porque sei que não estou parado. Sei que aquele é o momento ideal para ficar offline da realidade e para me ouvir a mim. Oiço-me tanto! Oiço tudo o que sou e tudo o que quero ser. Oiço tudo o que me preocupa e sei que as preocupações não são nada porque a vida é tudo. É tudo isto que eu sei que sinto e tudo isto que eu quero ser. 
  A vida é toda uma arte de querer estar e não estar. De procurar um equilíbrio e de não o encontrar até deixar de o procurar. Sou eu próprio a vida. Quero encontrar-me, acho que me encontro, mas há sempre algo que se perde de mim. Algo que se evaporou e mudou. Ficou cá uma impressão, uma sensação, mas nada mais fica. 
  O autocarro continua a sua viagem e eu não quero nunca que ele pare. Quero que pare quando eu quiser estar e talvez eu nunca queira estar. Ou talvez eu não queira estar porque tenho de estar. Passeio e passeio de mim para fora de mim. 
  Só quero continuar. Continuar a ser e a querer ser e a estar e não estar. E só não continuo porque não posso, porque não tenho como. Como a racionalidade complica e facilita a vida de uma pessoa. Ela é tudo.
  Mas eu continuo. Continuo mesmo estando. Porque eu sou uma viagem. Sou um eterno ser mutável, sou eu quem quer estar e não estar. Sou eu e tudo o que digo a mim mesmo. Viajo e recordo-me. Recordo-me que nunca parei. Sei que continuei sempre e que continuarei sempre. Serei sempre alguém fugaz. Sou uma viagem, sou um motor dentro de mim mesmo. Sou eu quem me conduzo e eu adoro conhecer novos caminhos.
  Continuo porque sou eu. Porque nada sou. Porque nunca quero estar. Continuo porque sou uma viagem. Sou uma viagem que nunca se esqueceu e que continuamente se quer deixar para trás. 


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