Intermitências do Eu
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Café la Nuit Van Gogh |
Entro no café.
São 22:33, mas isso eu não poderia dizer. Não uso relógios. Deixo o tempo
correr; se alguém o quiser tornar mais preciso, que o torne.
Entro no café.
São 22:33. Sinto-me pronto a mergulhar, mais uma vez, numa bela chávena de
café. Afogar-me-ei nessa bebida afrodisíaca que ora me eleva ora me mata. Sinto
o meu corpo a mover-se e a entrar na sala. Um corpo esguio, alto, revestido de
peças pretas.
Lá dentro, a luz
que vibra e que torna tudo berrante e sensitivo contrasta com a minha roupa
preta. Sinto-me um estrangeiro na Índia das cores ou no Brasil dos sabores.
Estou apenas num café.
Ninguém me vê
neste local. Neste canto que não foi retratado. Sento-me e penso na energia das
cores, porventura mais belas - porque mais contrastivas -, do que as do dia. O
verde do teto fere-me a alma, ao passo que o vermelho berrante da parede me
deixa em êxtase.
As pessoas
agrupam-se. São poucas, mas estão quase todas acompanhadas. Uma mesa com 2
pessoas ali ao fundo, outra mesa com 2 pessoas mais perto de mim et voilà uma mesa com alguém sozinho.
Também eu estou sozinho…
Ainda não me
vieram perguntar o que quero beber. Será que ainda desejo uma chávena dessa
bebida forte, saborosa, digna de paixão? Talvez. Não sei. Nunca soube dar
grandes respostas, mas é possível que beba um café.
De súbito, penso:
Quem é este corpo? É meu? Será meu? Meu a sério? Não sei. Sei que
há algo de forte, de essencial dentro de mim. O que será? Creio que sou eu. Eu contra os outros todos; o eu no
seu núcleo puro e duro. Sou eu que aqui estou. O meu corpo não passa de um
suporte, de um tecido orgânico que cobre o que me for de essencial.
Verdadeiramente
sou-me! Sou-me no meio da luz. Perco-me na chávena de café que, entretanto,
chegou. Leio-me no meio da multidão, que aqui não está.
Alguém se
levantou. A luz amarela tolda-lhe as feições. Parece quase inumano. Quem se vai
embora? Quem é o dono e o comandante daquele corpo? Daquela alma?
Temo não saber
responder. Temo ainda que não saiba responder a essas questões sobre mim. Não
sei ao certo o que sou, mas sei que me sou. Sei que há luzes no café, que essas
luzes me afagam, que me sufocam e me acariciam. Sei que estou aqui, como se
aqui pudesse estar qualquer outro.
Não importa o que
sou. O que importa é que ME sou. Importa-me a cor do céu quando o sol se põe,
as silhuetas recortadas e as bebidas, amadas por aqueles que nunca saem dos
cafés.
De repente, o
insólito aconteceu. Alguém igual a mim entrou e se sentou à minha frente. Pediu
qualquer coisa e o café, que explodia de cor, mergulhou na escuridão.
Onde estou?
(Nota: Texto criado em aula, a partir da pintura de Van Gogh que aparece após o título deste texto).
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